� jornalista, pesquisador e bi�grafo de nomes como Maysa e Jos� de Alencar, e publicou uma trilogia sobre Getulio Vargas. Ganhou quatro pr�mios Jabuti. Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.
Liberdade para Rafael Braga, jovem negro v�tima de sistema penal desigual
Maira Mendes/Editoria de Arte | ||
No in�cio do s�culo 20, o delegado Francisco Cardoso se vangloriava de ser o maior inimigo dos "vagabundos" do bairro carioca do Est�cio, ber�o do moderno samba urbano. Com ele, n�o havia conversa. Baseado na letra do C�digo Penal ent�o em vigor, despachava para o xilindr� todos os que n�o tivessem "profiss�o, of�cio ou qualquer mister, n�o possuindo meios de subsist�ncia e domic�lio certo". Quem fosse visto batendo perna na rua era enquadrado na chamada "Lei da Vadiagem".
Promulgada em 1890, dois anos ap�s a aboli��o, a lei apontava para alvo priorit�rio: ex-escravos ou descendentes de cativos que, por for�a da desigualdade, n�o haviam encontrado lugar na nova l�gica do mercado de trabalho. O suspeito, geralmente pobre e preto, era apanhado pela gola e conduzido debaixo de vara � delegacia. Os pr�prios policiais encarregados da captura atuavam como testemunhas de acusa��o.
A vers�o dos meganhas ganhava estatuto de prova irrefut�vel. Eventuais testemunhas de defesa eram ouvidas por mera formalidade. O inqu�rito subia para a Justi�a e os magistrados invariavelmente desprezavam quaisquer depoimentos que contrariassem a narrativa dos policiais, alegando que as declara��es a favor do r�u visavam apenas saf�-lo do alcance da lei.
Entre as v�timas do delegado Cardoso, contava-se bom n�mero de bambas do Est�cio. Negros, em sua maioria. Os arquivos policiais do princ�pio do s�culo passado, hoje sob a guarda do Arquivo Nacional, est�o atulhados de inqu�ritos assinados por delegados e ju�zes que olhavam para os primeiros sambistas –pretos e miser�veis– como criminosos em potencial.
Um s�culo depois, a criminaliza��o autom�tica de afrodescendentes persiste. Atualmente, dois em cada tr�s presidi�rios no Brasil s�o negros. Desse universo, a maioria absoluta � composta por homens entre 18 e 29 anos, segundo dados do Minist�rio da Justi�a. Na semana que passou, a seletividade do sistema penal brasileiro ficou escancarada por um caso paradigm�tico: a manuten��o na cadeia do jovem Rafael Braga, o �nico indiv�duo condenado no bojo das grandes manifesta��es de junho de 2013.
Rafael se enquadra no perfil majorit�rio da popula��o carcer�ria: negro, pobre, suburbano, de pouca vida escolar e egresso do sistema prisional. Em 2013, foi detido quando de um dos protestos no Rio de Janeiro, acusado de portar "materiais incendi�rios": duas embalagens pl�sticas, uma de desinfetante, outra de �gua sanit�ria. Arrastado � delegacia pela pol�cia, afirmou que n�o participara da manifesta��o, que n�o tinha interesse por pol�tica e que, passando no local por acaso, levava os materiais de limpeza para uma tia.
Sua hist�ria, por�m, foi confrontada pela vers�o dos policiais que o capturaram. Estes disseram que os bocais das embalagens estavam munidos de trapos de flanela, como se fossem pavios de uma bomba caseira incendi�ria. Rafael negou. As embalagens estariam lacradas. De nada adiantou o laudo t�cnico do esquadr�o antibombas indicar que, obviamente, garrafas pl�sticas n�o se estilha�am ao serem lan�adas e que desinfetante e �gua sanit�ria n�o t�m a "m�nima aptid�o para funcionar como coquetel molotov". A despeito disso, Rafael foi condenado a cinco anos de pris�o.
No final de 2015, a pena progrediu para o regime aberto. Rafael arranjou um emprego, sendo monitorado por tornozeleira eletr�nica. Um m�s depois, saiu de casa de bermudas, a fim de comprar p�o para a m�e, quando foi abordado por policiais militares, que o prenderam sob acusa��o de tr�fico de drogas.
Afirmaram ter encontrado com ele uma sacola com 0,6 gramas de maconha e nove gramas de coca�na. Rafael disse estar de m�os vazias. A palavra de uma testemunha de defesa foi ignorada, pois a Justi�a considerou que esta visava "t�o somente eximir as responsabilidades criminais do acusado".
Portanto, com base apenas nos depoimentos dos policiais -considerados "prova robusta" no texto da senten�a-, Rafael foi condenado novamente, desta vez a 11 anos de pris�o. Na �ltima ter�a-feira (1�), foi posto em vota��o um pedido de habeas corpus a seu favor, no Tribunal de Justi�a do Rio. Dois dos tr�s desembargadores votaram pela manuten��o da pena. O terceiro pediu vistas do processo. Enquanto isso, Rafael segue preso em Bangu, alimentando as estat�sticas perversas que incidem sobre outros jovens iguais a ele, pretos, pobres e perif�ricos.
O delegado Cardoso ficaria orgulhoso de seu legado.
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