Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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Professores podem ensinar que hoje é aniversário do golpe?

Polêmica envolvendo vereador bolsonarista e escola mostra o quão difícil está o clima nas salas de aula do país que tem censura a festival e escândalo de corrupção no MEC

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Neste 31 de março, vamos falar do aniversário do golpe militar, da censura às manifestações políticas no festival Lollapalooza, no último final de semana, ou do escândalo do governo envolvendo o repasse de verbas do Ministério da Educação?

Pensemos em todos esses temas a partir de uma polêmica que se passa em uma escola de Campinas (interior de SP). Tudo começou quando o vereador bolsonarista Major Jaime (PP) protocolou, em 23 de fevereiro, um requerimento na prefeitura para que se investigue "doutrinação ideológica" na EMEF Maria Pavanatti Fávaro. Ele solicita informações sobre o projeto pedagógico, indaga "quem é a diretora da escola, a coordenadora, quem são os professores e qual é a formação de cada um", além de requerer o envio de documentos dos docentes "de forma detalhada e individualizada".

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Sala de aula da escola Gedeão Ribeiro, na zona rural de buriti, inteiro do Maranhão - Avener Prado - 9.ago.2018/Folhapress

Com pouco mais de 500 estudantes e localizada na periferia da cidade, a escola municipal foi uma das parceiras de um projeto de convivência escolar ética desenvolvido por professores da Unesp e da Unicamp que fazem parte do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem). A partir de 2014, a EMEF passou a contar com consultoria e formação dos professores para implementar novos processos pedagógicos, pautados no diálogo entre alunos, familiares e educadores.

Nesse período, conta Telma Vinha, professora da Unicamp e coordenadora do Gepem, a EMEF, entre outras ações, envolveu os pais em avaliações sobre a escola e implementou assembleias para escutar os alunos, que criaram um podcast. Dentre as conquistas obtidas, está um prêmio por um projeto de estúdio audiovisual para que os estudantes desenvolvam uma relação crítica com a mídia. A melhora no aprendizado foi constatada pelas provas do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), criado em 2007 pelo governo federal para medir a qualidade do ensino público. A partir das mudanças, a nota do fundamental 2, conta Vinha, subiu de 3,6 para 5,4.

Mas o vereador está preocupado com duas imagens que teria recebido de pais de alunos. Em uma delas, em uma escada da escola, entre dizeres como "harmonia" e "Lugar de mulher é onde ela quiser", há um grafite "Fora Bolsonaro". A outra imagem é a de uma prova com uma questão sobre "o negacionismo diante da vacina", em que há uma charge com Bolsonaro e a frase "Sol e felicidade combatem Covid". O vereador exige que a escola esclareça "qual é a finalidade pedagógica" das atividades de "posicionamento ofensivo e desrespeitoso contra o governo e o presidente".

Em nota oficial, o conselho da escola afirmou que o seu projeto pedagógico é de "convivência democrática" e que as ações "convergem para a leitura do mundo sob uma perspectiva crítica e de boas relações sociais". Sobre a escada especificamente, disse que o grafite foi realizado em novembro e que permaneceu no local por apenas quatro dias, sendo apagado após uma conversa dos gestores e professores, "de forma tranquila e didática", com os alunos, "que compreenderam e refizeram o trabalho".

A respeito da charge, a escola afirma que se "trata de uma imagem pública e de ampla circulação" e que "a atividade solicitava a redação de um texto de opinião". O objetivo da questão era observar competências "de escrita, habilidade em articular diferentes ideias, examinar uma imagem, compreendê-la e exercitar o senso crítico". O aluno, diz a nota, tinha liberdade para se expressar "de acordo com suas visões de mundo".

Houve reação à pressão do vereador. A Faculdade de Educação da Unicamp assinou uma moção intitulada "Por uma escola democrática, autônoma e sem mordaça", que menciona preceitos constitucionais como "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber". Esses princípios, diz o texto, não são aceitos por defensores do atual governo, que "não toleram a ideia de uma escola voltada para a autonomia do pensar". O requerimento do vereador, ressalta a moção, "é uma ação violenta", que "agride não apenas uma escola em particular", mas toda a educação.

O site do movimento Escola sem Partido, apoiado por Bolsonaro, é transparente sobre o que pensa sobre a liberdade em sala de aula, ou melhor, sobre a falta dela: "Dentro da escola, nem professores, nem alunos têm direito à livre manifestação do pensamento". Essa concepção surreal, que ignora que a educação só é possível com a livre troca de pensamentos e opiniões, fica evidente com a história de Campinas, um resumo, infelizmente, do que se passa nestes últimos anos em escolas do país inteiro.

Nesse clima de inquisição, será que os professores debatem em aula, sem receio, a censura imposta a artistas do Lollapalooza a pedido do partido do presidente? E o aniversário do golpe, as mortes e a tortura? Ou teriam eles que "celebrar" o "movimento" que "pacificou e reorganizou" o país para "garantir as liberdades democráticas" e foi um "marco histórico", como defendeu, neste 31 de março e no do ano passado, o ministro Braga Netto, que deverá ser o vice na chapa bolsonarista?

Será que o Ministério da Educação tem alguma orientação para a aula de hoje? Ou, para definir o que ensinar aos alunos, é melhor pedir instruções diretamente aos pastores que Bolsonaro indicou para comandar as verbas públicas da educação?

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