Ser é um verbo irregular, intransitivo e predicativo. Implica identidade, particularidade. É um conceito fundamental associado à existência de algo. Tudo o que existe é ser. Ser é o poder de existir.
Ser mulher implica existir como alguém capaz de resistir a papéis sociais historicamente construídos e compartilhados. Sou uma pacifista declarada, muito embora a vida não me tenha poupado de embates que efetivamente me fazem questionar se a paz é uma utopia ou uma ficção.
No último final de semana, comecei a ler o livro “Resistência – A História de uma Mulher que Desafiou Hitler”, de Agnès Humbert. São as memórias de uma historiadora francesa que trabalhava no Museu do Homem de Paris quando os alemães invadiram a cidade durante a 2ª Guerra Mundial.
Enquanto Charles de Gaulle, sediado na Inglaterra, convocava os franceses a resistirem e enfrentarem os nazistas, Agnès e seus colegas de trabalho fizeram aquilo que estava ao seu alcance: enfrentaram os usurpadores usando suas habilidades como pensadores para produzir ideias e convocar os franceses a não aceitarem a violência que ocorria em seu país.
Passado um ano de atividade, o grupo foi descoberto após a denúncia de um espião. Os homens do grupo foram fuzilados, e ela, a única mulher, foi condenada a um campo de trabalhos forçados onde ficou por quatro anos.
Suas memórias, enquanto ainda trabalhava no museu, foram escritas em um diário, e a fase da prisão foi posteriormente registrada e publicada como livro. O relato inicial é quase informativo, descreve o choque seguido de apatia e inércia diante da agressividade do invasor.
A fase da prisão é marcada por uma narrativa impressionista na qual transborda a dor pela ausência da liberdade, mas também o modo de enfrentamento, desenvolvido para sobreviver à barbárie.
E então é possível observar que a fraternidade, a compaixão, a solidariedade não são discursos construídos para justificar a análise de situações trágicas, mas sentimentos que efetivamente nos humanizam e fazem a esperança brotar mesmo nos momentos de maior desespero e agonia.
O prefácio de Marina Colasanti traz mais tempero a essa discussão. Lá está: “As mulheres sempre perdem a guerra. Não a querem, mas a perdem. Perdem quando estão no caminho dos exércitos e se tornam botim. Perdem quando batalham em silêncio nas cidades esvaziadas dos seus homens, para manter sólida a retaguarda e conservar a ordem do país. Perdem quando recebem seus homens num caixão ou quando eles voltam com o equilíbrio despedaçado”.
Sem exageros, vejo isso também acontecer no esporte. Excluídas no princípio com base na moral vitoriana e na ciência falocêntrica, as mulheres no esporte foram também vítimas de uma guerra não declarada e que refletiu década a década, as tensões vividas em outras esferas da sociedade.
A primeira edição olímpica foi o marco de uma exclusão que nunca mais se repetiu. E os números provam que, diante de condições dignas de treinamento e do mínimo de apoio, o espetáculo protagonizado pelas mulheres pode ser tão atrativo e levar tanto público aos estádios quanto as competições masculinas. A beleza do espetáculo não está em ser feminino ou masculino, e sim na qualidade do gesto técnico e do nível de competitividade.
A luta das mulheres pela igualdade e equidade de condições no esporte persiste. Às vezes velada, silenciada, invisibilizada, ela segue, porque ser mulher implica existir, não apenas em sobreviver.
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