Em 2015, em Mariana, a lama de uma barragem rompida da Samarco levou minutos para engolir a pequena Bento Rodrigues, três horas para alcançar o rio Doce e 17 dias para sujar o mar já no Espírito Santo.
Em 2019, a lama de uma barragem rompida da Vale, dona da Samarco junto com a anglo-australiana BHP Billiton, correu a estimados 80 km/h para varrer 270 almas, três até hoje desaparecidas, na também mineira Brumadinho. Demorou um pouco, mas imagens de câmeras de segurança acabaram reveladas para mostrar como tudo foi rápido, implacável e violento.
Desgraça não tem modos nem relógio, e tragédia de outra ordem acontece desde então em Maceió, uma exploração de sal-gema da Braskem colapsa centímetro a centímetro em um grande área urbana da cidade. Subsidência, explicou à CBN a professora da universidade local, especialista por ofício e também por ser uma das 60 mil pessoas desterradas pelo fenômeno. "É a notícia mais importante do dia, uma cratera engolindo lentamente parte de uma capital brasileira", sintetizou a narradora. Apenas O Globo concordou com ela na manhã seguinte, com manchete em seu impresso (usando o papel desse dia como régua, Folha deu chamada minúscula, O Estado de S.Paulo passou batido).
O buraco da Braskem virou notícia afinal. A verdade é que já era uma desde 2019, ano em que o repórter David Lucena relatou na Folha ação da Promotoria para bloquear R$ 6,7 bilhões da empresa, então apenas suspeita de ser a responsável por "afundamento do solo de um bairro e rachaduras em casas e edifícios". De Maceió, o mesmo Lucena publicou na última quarta-feira (6) tocante depoimento sobre como a cidade vive sua rotina enquanto acompanha estarrecida a própria destruição.
A primeira menção ao problema, no índice da Folha, é de 13 de dezembro de 2018, há quase cinco anos: "Paredes racham, piso afunda e bairro tenta achar anomalia no solo em Maceió". O nome da Braskem aparece apenas no 12º parágrafo, como uma terceira hipótese para o ocorrido, que ainda seria investigado pelo Serviço Geológico Brasileiro. No dia anterior, a empresa curiosamente surgia já no título com roupa de ativista ambiental: "Braskem lança oito diretrizes para economia circular".
Essa Braskem, a empresa, sempre foi notícia e em volume bem mais alto do que a tragédia que provocou, mostra levantamento de Marcelo Soares, fundador da Lagom Data, estúdio de jornalismo e dados, e um ex-colega de Redação. Com a ajuda de um robô, a produção da Folha foi escrutinada e se constatou que o jornal publicou, desde aquele título de 2018, 137 reportagens citando o termo "Braskem", mas sem menção a "Maceió". As duas palavras aparecem juntas em outros 71 textos, 40 deles publicados neste mês de dezembro e até quinta-feira (7), uma resposta natural ao agravamento da situação.
É razoável Braskem ser notícia. É uma das maiores empresas do país, com estrutura e orçamento para bancar no mínimo uma assessoria de imprensa competente e, é claro, potencial para gerar fatos econômicos. "Isso explica a presença perene no jornal, principalmente em Mercado", diz Soares. Por outro lado, a cobertura das consequências em Maceió se mostra mais esporádica no período. A degradação não arrefeceu, pelo contrário, deu -se de maneira a moldar um noticiário mais de projeções do que de consequências. A precipitação do afundamento e a percepção de risco aumentado alteraram essa dinâmica nestas últimas semanas, tornando fácil, para não dizer obrigatório, um novo tratamento editorial. Até o vento mudar, no entanto, o ritmo modesto de publicações revela uma intenção, consciente ou não, de "abdicar do debate sobre o problema", pondera o jornalista.
Números podem ser cruéis, e Soares cutuca a Folha notando que "Farofa da Gkay" aparece em uma quantidade de notícias proporcional à obtida quando a busca é feita com "Braskem" e "Maceió". O levantamento se limita a este jornal, mas não é difícil imaginar que o resultado seja semelhante em outros veículos de imprensa.
O que não deve impedir a Folha de refletir sobre o caso e discutir sua permeabilidade a certo tipo de conteúdo, notadamente o que se impõe pela estrutura de partes interessadas, e a resistência ao que já foi noticiado e precisa ser repetido por dever coletivo, público. Atentar às emergências é fácil. Ater-se a elas, ainda mais na calmaria, é outra história.
Sobram tragédias latentes e silenciosas no país sobre as quais calamos, cansamos de falar ou desistimos por falta de perspectiva de solução ou mesmo hipocrisia. A maior da história, por exemplo, acontece exatamente agora, diante de nossos olhos, a crise climática. Sobram incompetências, públicas e privadas, não deveria ser opção preferir uma delas.
É papel da Folha não deixar as coisas se acomodarem.
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