Lucas foi avisado: antes de partir da Dinamarca para a Islândia em finais do século 19, com o propósito de estabelecer uma igreja luterana em terra inóspita, o seu superior eclesiástico o alertou para a feroz violência da natureza.
A viagem seria uma provação, um teste à sua fé, uma forma de ele se confrontar com os seus limites. Missão difícil, mas não impossível: os apóstolos enfrentaram desafios iguais, ou até piores. Nada é impossível pela graça de Deus.
Além disso, viver entre os locais significa também ser capaz de entender os seus costumes e estar disposto a se adaptar a eles. Um ato de humildade, de renúncia —e de sobrevivência física e espiritual.
Lucas parte, com o orgulho próprio dos ungidos, e os conselhos perdem-se na viagem. Inflexível na sua fé e na sua retidão, são as circunstâncias que se devem adaptar a ele.
É um mau caminho: numa das sequências mais importantes do filme "Terra de Deus", a gigantesca cruz de madeira que ele transporta no dorso do cavalo para a nova igreja é levada pela corrente do rio, como se fosse um destroço sem importância. Um prenúncio da morte, da primeira morte, que virá de seguida.
Mas não é apenas a natureza que se recusa a obedecer à obstinação de Lucas. Os habitantes o olham com desconfiança e o seu guia, Ragnar (assombroso Ingvar Sigurdsson), personifica essa relutância. Rude e selvagem como as paisagens que o rodeiam, nele habita o paradoxo do renegado: a vontade de ser acolhido pela igreja e a certeza de que essa submissão é uma impossibilidade e uma ameaça.
"Terra de Deus", terceira longa de Hlynur Pálmason, em cartaz no Brasil, foi indicado pela Islândia a uma vaga no Oscar para melhor filme estrangeiro.
Duvido que tenha chances: na sua austeridade e beleza, a Islândia captada pela câmera de Pálmason mostra o silêncio da paisagem, a indiferença da natureza aos planos dos homens e a inexorável passagem do tempo, que tudo neutraliza e absorve. É um filme para espíritos corajosos e, sobretudo, pacientes.
Mas o filme é também uma lição para aqueles que se deixam conduzir pela "tirania da ideia", seja religiosa ou ideológica: a crença infantil de que a vontade humana move montanhas e que somos nós, senhores do nosso destino, que podemos decidir o destino dos outros e do mundo.
É uma crença que termina quase sempre na destruição e na loucura.
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