![joão pereira coutinho](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15146305.jpeg)
Escritor portugu�s, � doutor em ci�ncia pol�tica.
Escreve �s ter�as e �s sextas.
Podem ficar tranquilos: ningu�m chega atrasado ao pr�prio funeral
Um homem caminha no centro da vila. A Morte aparece, apresenta-se e diz: "Temos encontro marcado para as seis da madrugada." O homem, aterrorizado, vende todos os seus bens e, cavalgando sem parar, afasta-se da vila com a velocidade de um trov�o.
Muitas horas depois, e muitas milhas depois, sente-se cansado, dorido, com sede. Decide parar junto a uma fonte para recuperar energias. E a Morte, olhando o seu rel�gio, surge novamente em cena com um sorriso: "Curioso. Eu poderia jurar que o senhor n�o ia chegar em tempo."
Li essa hist�ria em cr�nica antiga de Victor Cunha Rego, um colunista portugu�s que tamb�m escreveu nesta Folha muitos anos atr�s. E lembrei-me dela no Dia de Finados, quando fui ao cemit�rio visitar a fam�lia.
Havia gente, havia flores, havia velas. Mas, entre os presentes, n�o havia uma �nica criatura que pudesse ostentar o grotesco t�tulo de "jovem". N�o quero exagerar, embora a minha fun��o seja essa. Mas penso que era o mais novo naquele cen�rio de m�rmores brancos. E eu sou um cavalheiro de meia-idade, ou a caminho de. Respeito.
O caso n�o constitui surpresa: quem leu o historiador Philippe Ari�s em "O Homem Diante da Morte" sabe que o medo do fim � coisa recente.
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O ator sueco Bengt Ekerot como a Morte em cena do filme "O S�timo Selo", de Ingmar Bergman |
Na Idade M�dia, por exemplo, a Velha Senhora fazia parte da vida e o condenado (n�o seremos todos?) preparava-se para a despedida com uma serenidade ritual. O quarto enchia-se de gente –fam�lia, vizinhos. Obviamente, crian�as.
E os cemit�rios tamb�m "normalizavam" o assunto: na Antiguidade, os mortos eram enterrados fora da cidade. No per�odo medievo, eles estavam no centro da vida –e da vila: espa�os de encontro para os vivos como os shoppings de hoje.
Quando li Ari�s, lembro-me de rir alto com a preocupa��o crecente das autoridades eclesi�sticas para proibirem certas pr�ticas nos cemit�rios. Como dan�ar. Ou jogar. Ou tocar m�sica. Ou montar certos neg�cios.
No s�culo 18, o espect�culo mudou: a morte passou a ser vista como uma importante separa��o –para os mortos (da vida) e para os vivos (do morto). A morte era uma experi�ncia "est�tica" e quase bela, para certas almas rom�nticas; ou, ent�o, era uma �pera dram�tica, com l�grimas (abundantes) e l�pides (art�sticas).
Os cemit�rios portugueses ainda expressam essa monumentalidade com figuras de anjos que choram ou, pelo contr�rio, dormem serenamente sobre os bra�os. Suspeito que no Brasil � a mesma coisa. Confesso que essa estatu�ria sempre me pareceu –como diz�-lo?– obscenamente "kitsch".
No s�culo 20, nova mudan�a. Ou, como defende Ari�s, o in�cio da oculta��o. Morrer � quase uma vergonha –para o pr�prio e para a fam�lia. Morre-se no hospital, n�o em casa; os funerais s�o r�pidos para n�o perturbar demasiado; as crian�as s�o "protegidas" dessa "inf�mia"; e o ideal � n�o haver l�pide, mas cinzas. Espalhadas no mar, na montanha, no vaso sanit�rio. Quanto mais depressa a evid�ncia da morte desaparecer da paisagem, melhor. Como explicar essa fobia?
Se a mem�ria n�o me falha, Ari�s n�o oferece nenhuma explica��o espiritual profunda. Sim, o desenvolvimento econ�mico teve uma palavra. Sim, a "tirania da felicidade" tamb�m –vidas felizes n�o admitem momentos infelizes.
Mas parece-me evidente que o decl�nio da religi�o gerou um certo temor inconsciente nos homens contempor�neos. Se a festa n�o continua do outro lado do pano, � preciso aproveitar enquanto o pano n�o desce.
N�o admira que as nossas sociedades tenham elevado a Sa�de e a Juventude (com mai�sculas) a patamares verdadeiramente hist�ricos. A Sa�de e a Juventude sempre s�o uma ilus�o de imortalidade. Nietzsche sabia do que falava: depois da "morte de Deus", a adora��o org�smica do corpo. � tudo que nos resta.
Longe de mim "moralizar" sobre o assunto. Mas pergunto, honestamente, se a nega��o da morte � a forma mais saud�vel de celebrar a vida. E, j� agora, se a devo��o pelo corpo, pela sa�de e pela felicidade perp�tua s�o a forma mais saud�vel de a viver.
Duvidoso. Indiferente. Como na hist�ria, podemos cavalgar toda a noite para longe da vila. Mas, � hora marcada, ningu�m vai chegar atrasado.
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