Joanna Moura

É publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade

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Joanna Moura
Descrição de chapéu Todas

Um rei brasileiro se apresenta no Royal Albert Hall, em Londres

Duas palavras bastaram para que nos tornássemos um só. Para que aquela sensação de despertencimento desse lugar a outra diametralmente oposta

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Ao sair do metrô, ouvi o som de pessoas conversando em português. A verdade é que, desde que deixei o Brasil, me tornei PhD em reconhecer brasilidade, e mesmo se não tivesse escutado a cantoria da língua familiar, saberia que era gente nossa, pois falavam não só com os lábios, como fazem os ingleses, nem com as mãos, como os italianos, mas com todo o corpo, de um jeito que só aqueles forjados no balanço das tropicálias e dos tropicalismos são capazes de fazer.

O remelexo era tal que os copos de cerveja, esses sim inexoravelmente ingleses, se mexiam junto, sempre com um certo delay, deixando derramar por cima do aro de vidro ondas de espuma e líquido. Naquela dança, eram como os pares inaptos de uma dupla de forró em que um é claramente profissional e, o outro, apenas um humilde amador, tentando em vão acompanhar o ritmo do mestre.

Segui a passos largos pela Exhibition Road, a rua habilmente nomeada que abriga três dos mais importantes museus de Londres. A chuva começava a cair, fina, porém insistente. Apertei o passo para não chegar encharcada. Apesar dos oito anos em terras britânicas, ainda não peguei costume de ter um guarda-chuva sempre à mão. E se esta não é a prova cabal de que mantenho-me fiel ao meu status de imigrante, não sei o que seria.

Fotografia colorida mostra o cantor Gilberto Gil, um homem negro de cabelos brancos, sentado em um banco com um violão no palco do Royal Albert Hall
Gilberto Gil se apresenta no Royal Albert Hall, em Londres, com a turnê 'Aquele Abraço' - Daniela Souza - 11.out.23/Folhapress

Enquanto caminhava, reconhecia meus semelhantes em palavras e risadas soltas, camufladas pela água que caia, a buzina que gritava, o vento que soprava. Andamos todos na mesma direção, unidos no nosso despertencimento daquela rua, daquele clima, daquele país, conectados pela excitação de saber que, dali a pouco, tudo iria mudar.

Virei a esquina na Kensington Gore, uma ruelinha pequena demais para esconder qualquer maravilha arquitetônica de grande porte. Portanto, qual não foi a minha surpresa, quando dei de cara com ele, um dos prédios mais imponentes dessa cidade de prédios imponentes. O Royal Albert Hall parece de fato não caber no enclave que habita, apertado entre outros prédios, sua forma redonda de coliseu contrastando com as linhas retas dos edifícios vizinhos. E eu, do outro lado da rua, me sentindo pequena, mínima.

Era minha primeira vez ali, naquele lugar que viveu tantas vidas. Andei pelos corredores reparando nas fotos que preenchem as paredes, registros desses 152 anos de história. Subi as escadarias até encontrar meu lugar, que não poderia ser mais longe do palco, mas não há lugares ruins no Royal Albert Hall, somente lugares piores ou melhores do que outros. De lá de cima via todo o prédio, o teto imponente, o vão central, os camarotes ao redor. Sentei e observei o formigueiro de gente diminuir o ritmo, se encontrando no meio do formigueiro.

Quando o movimento parou, as luzes da plateia se apagaram. Lá longe, no palco, um feixe de luz se acendeu e cinco pessoas entraram. Cada uma se posicionou em frente a um instrumento e, bem no meio, atrás do microfone, uma figura comprida, de cabelos curtos e brancos, olhou para o povo na plateia e disse: Boa noite.

Duas palavras bastaram para que nos tornássemos um só. Para que aquela sensação de despertencimento desse lugar a outra diametralmente oposta. Olhei ao redor para aquele pontilhado de cabeças brasileiras, levantadas pro alto, imbuídas de um orgulho que não é todo dia que se vê por aqui. É que a vida longe de casa testa a gente. É o frio que corta, é a solidão que apavora, é a saudade que esmaga, é a língua que escapa.

Minha mãe era imigrante. Foi para o Brasil com vinte e poucos anos e por lá ficou durante quatro décadas. Foi lá que se casou, teve os dois filhos, trabalhou, fez amigos, mas nunca se sentiu brasileira, nunca esteve em casa. Amava e reclamava do Brasil em igual medida, numa relação de gosto e desgosto que só vim a compreender quando fiz o caminho oposto ao dela, do oeste para o leste, do sul para o norte, do Brasil para cá. Recentemente, ela voltou pra casa e eu conheci um lado dela que nunca tinha visto, minha mãe finalmente está à vontade.

Às vezes me perguntam se penso também em voltar e, por enquanto, digo que não. Cultivo ainda uma curiosidade quase masoquista de viver longe do ninho. Imagino ainda outros paradeiros depois deste na terra que não é mais da rainha, mas voltar para casa ainda não.

Por enquanto, me curo reconhecendo os meus na multidão, e me juntando a eles para ver cantar, naquele palco que havia abrigado tanta realeza, um rei brasileiro. Naquela noite, Gilberto Gil nos trouxe para perto de casa e deu a cada um de nós um fio de esperança quando proferiu: Hoje me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar.

Quem sabe, Gil. Quem sabe um dia eu não volto também.

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