David Frost, célebre âncora da BBC, procurava, no início do ano 2000, esquadrinhar uma figura enigmática, recém-chegada à elite da política global. Perguntou ao entrevistado se a Rússia poderia integrar a Otan, aliança militar liderada pelos Estados Unidos. "Por que não? Por que não?", respondeu Vladimir Putin, substituto de Boris Ieltsin no Kremlin. "Não descarto essa possibilidade... No caso de os interesses russos serem levados em conta, se for um parceiro em condições de igualdade."
O ex-espião prosseguiu: "A Rússia é parte da cultura europeia, e eu não vislumbro meu próprio país isolado da Europa". Suas opiniões, no início da carreira presidencial, eram pouco conhecidas, ao contrário do passado, vinculado à temida KGB.
Passadas duas décadas, crescentes rusgas entre o Kremlin e a Casa Branca, mandachuva da maior aliança bélica da história, alimentam uma crise diplomática a provocar cheiro de guerra entre detentores dos dois maiores arsenais nucleares. Resgatam-se temores da finada Guerra Fria.
Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, frustraram-se expectativas de laços estáveis entre Washington e Moscou. Imaginar cooperação bilateral, possível e necessária em campos como combate ao terrorismo, mudanças climáticas, desarmamento e segurança nuclear, transformou-se quase em peça de ficção.
A raiz do fracasso na busca de vínculos estáveis se encontra basicamente em leituras distintas, pelo Kremlin e pela Casa Branca, do significado do fim da Guerra Fria. Para os EUA, o começo dos anos 1990 desenhou o apogeu de seu poder e prestígio no cenário internacional. Até mesmo um chanceler francês se referia ao país como a "hiperpotência".
Estrategistas na Casa Branca, democratas ou republicanos, concluíram estar diante da oportunidade histórica de impor a "pax americana", em particular na Europa, epicentro da disputa entre Moscou e Washington entre o término da Segunda Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim. Como ferramenta dessa estratégia, os EUA usaram a expansão da União Europeia e da Otan rumo às fronteiras da Rússia. Desde 1999, 14 países aderiram à aliança militar.
Para o Kremlin, a diluição da Guerra Fria e a redução de gastos militares correspondiam a uma necessidade, para salvar a superpotência falida. Mikhail Gorbatchov, ciente da debilidade do império, propôs ao EUA trocar rivalidade por cooperação, de olho na sobrevivência de uma versão desbotada do bolchevismo. Ieltsin liderou a dissolução da URSS, tomou o lugar de Gorbatchov e esperava receber dos americanos a recompensa, em ajuda econômica, por ter comandado a desintegração de um país antes rotulado em Washington de o "império do mal".
A elite política em Moscou buscava a aproximação com Washington por dois motivos: econômico, a fim de contribuir para sua manutenção no poder, e de visão geopolítica, priorizando a inserção da Rússia, por razões históricas, em um contexto europeu e ocidental.
Os EUA, no entanto, optaram por enfatizar a "pax americana" e por manter a desconfiança em relação aos donos do Kremlin, maciçamente ligados ao passado soviético. Ao longo das últimas décadas, a Casa Branca preferiu ver a Rússia mais como adversária e menos como parceira.
Resultado: Moscou aposta na aproximação com Pequim, movimento geopolítico também a fortalecer, no plano doméstico, os nacionalistas russos e o autoritarismo de Putin. O cenário global seria mais estável e a Rússia, provavelmente mais democrática, se o país fosse menos isolado e mais integrado às chamadas estruturas europeias e ocidentais.
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