O Eurasia Group acaba de lançar nesta semana nosso relatório anual de riscos globais, e, como aconteceu na edição anterior, os Estados Unidos figuram no topo da lista. Diferentemente do ano passado, porém, nossas preocupações em relação ao país se estendem para muito além de 2021.
Comecemos com uma afirmação que em tempos normais seria totalmente isenta de controvérsia: a eleição presidencial americana teve um vencedor claro. Esse vencedor foi Joe Biden.
Entretanto, quase metade de todos os americanos se recusam a aceitar que Biden conquistou a Presidência de modo legítimo. Como os vergonhosos eventos do Capitólio nesta semana demonstraram, uma pequena parcela dos americanos está disposta a usar a violência para provar seu ponto.
As democracias dependem da confiança generalizada de que a vontade política da população está sendo respeitada, e tem sido esse o caso de todas as democracias industriais avançadas da era do pós-guerra.
Mas a eleição de 2020 e a turbulência que a seguiu mostraram que isso não pode mais ser dado como certo e garantido nos Estados Unidos. Joe Biden é o 46º* presidente; o asterisco denota sua ilegitimidade aos olhos de milhões de pessoas. E todos os sinais indicam que essa será a nova normalidade na política americana. Já estamos na era da “presidência com asterisco”.
A fé no processo político americano não é a única coisa que foi virada do avesso nos últimos anos, na medida em que a desigualdade crescente reconfigurou os votos eleitorais tradicionais.
Hoje, a divisão política dominante nos EUA é entre coalizões de moradores urbanos com nível de instrução superior e eleitores da zona rural.
O presidente em final de mandato Donald Trump aproveitou essa divisão (que é amplificada pelo Colégio Eleitoral) com grande efeito; ela lhe rendeu uma vitória em 2016 e uma quase vitória em 2020.
Ele foi fortalecido por um ambiente de mídia fragmentado devido à ascensão da tecnologia, que facilita mais que nunca a escolha das narrativas noticiosas que reforçam as posições políticas de cada um, graças às redes sociais.
E há a política pessoal de Trump, que é baseada em alimentar divisões. Ele passou a representar a ala antiestablishment da política americana, e o apoio político que ele continua a gozar —que ficou claro com a invasão do Capitólio nesta quarta (6)— vai ampliar as divisões do país e impulsionar teorias conspiratórias infundadas.
Há políticos oportunistas em número mais que suficiente em Washington dispostos a apoiar e levar adiante os ataques (basta ver o número de congressistas que mantiveram sua contestação contra a certificação de Biden mesmo após o processo ter sido afetado).
Alegações de injustiça ou fraude eleitoral entraram para a normalidade do discurso político nos EUA e vão continuar a fazer parte do cenário político americano por muito mais tempo que o próprio Trump.
Infelizmente para o presidente eleito Biden, isso não é algo que ele poderá ignorar depois que tomar posse, em 20 de janeiro. O fato de ter uma parcela grande da oposição política não apenas se opondo às suas iniciativas, mas também rejeitando ativamente seu direito de propô-las vai fazer com que lhe seja ainda mais difícil realizar ideais progressistas como um salário mínimo nacional ou novos direitos eleitorais, para a consternação de sua base democrática.
Fato ainda mais preocupante para o país como um todo, vai limitar fundamentalmente a capacidade de Biden de lançar tentativas de boa fé de reparar a desgastada rede de segurança social —uma das principais causas da desigualdade presente na sociedade americana hoje— e empreender o tipo de estímulo maciço necessário para manter a economia americana à tona ou reformar as operações da saúde americana, num momento em que o país permanece atolado em uma pandemia do tipo que só ocorre uma vez a cada cem anos.
Quando um lado enxerga o outro como sendo ilegítimo, isso impossibilita fundamentalmente a cooperação e as concessões mútuas. E que ninguém se engane –estes são desafios que requerem a adesão ampla de ambos os lados da divisão política.
Embora esse seja um risco principalmente doméstico dos EUA, seus efeitos podem contaminar o resto do mundo. Os EUA ainda são o país mais poderoso do mundo, mas um país dividido internamente não pode liderar outros.
Isso significa que haverá mais disfunção geopolítica internacional, na medida em que, enquanto Washington continuar dividida em relação a seus objetivos de política externa e como alcançá-los, os EUA continuarão incapazes de desempenhar o papel de mediador internacional que exerceu no passado.
Igualmente crítico é o fato de que os aliados dos EUA vão se distanciar de Washington por medo que daqui a quatro anos o país possa de repente reverter a uma orientação do tipo “América em primeiro lugar”. Os adversários podem se sentir fortalecidos, antevendo a mesma possibilidade.
Os últimos meses e semanas não foram os melhores momentos da democracia americana. De fato, parece que, enquanto os EUA estiveram tão ocupados exportando a democracia para outros países, podem ter se esquecido de guardar um pouco dela para si mesmo. A partir de 20 de janeiro esse será um problema para Biden resolver. É uma tarefa hercúlea, e por isso mesmo é nosso maior risco do ano.
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