Não escrevo hoje sobre a eleição americana porque qualquer coisa que eu dissesse ficaria irrecuperavelmente velha num ritmo ainda mais acelerado do que o do já efêmero jornalismo diário. Volto, portanto, minhas baterias contra Flávio Dino.
O ministro do STF determinou a retirada de circulação de quatro obras jurídicas com conteúdo discriminatório contra mulheres e homossexuais. Os quatro títulos são todos da mesma dupla de autores, os gêmeos Luciano e Fernando Dalvi, que, junto com a editora, também foram condenados a pagar indenização de R$ 150 mil por danos morais coletivos.
As passagens citadas no relatório são de fato constrangedoras na carga de preconceito que desfilam. Ainda assim, acho que Dino errou. Quando a liberdade de expressão se choca com direitos constitucionais mais abstratos, como a autoimagem de grupos, é a primeira que deve prevalecer. Há até um argumento aritmético. O único comando constitucional que aparece duas vezes no texto da Carta é justamente aquele que proíbe a censura, que figura no art. 5º, IX e no 220. Não há muita dúvida, portanto, sobre qual princípio o constituinte privilegiou.
Embora eu defenda versões bem robustas da liberdade de expressão, não veria escândalo maior se a Justiça tivesse se limitado a impor o pagamento de uma indenização. Mas Dino foi muito mais longe, pois determinou que as obras tenham sua circulação suspensa, sejam recolhidas e destruídas, inclusive exemplares de bibliotecas públicas. É aí que mora o perigo.
A história da humanidade é um catálogo de preconceitos, do qual não se excluem algumas das melhores criações literárias e filosóficas. Eurípides e Schopenhauer têm passagens francamente misóginas; Aristóteles defende a escravidão; Shakespeare e o doutor da Igreja João Crisóstomo não escondem seu antissemitismo. A Bíblia manda apedrejar homossexuais masculinos.
Não resisto a uma "reductio ad absurdum". Se casos semelhantes envolvendo obras desses autores chegarem à mesa de Dino, ele mandará picotar Aristóteles e Shakespeare? E as Escrituras?
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