Hoje cedo o espaço da minha coluna para seis colegas escritoras que viveram a tragédia climática no Rio Grande do Sul. Perguntei a cada uma delas: o que você nunca mais vai esquecer?
Aqui, no destino das águas, o desastre chega anunciado, feito filme de terror. Sacos de areia nas portas, barricadas nas ruas. A ilusão muda a paisagem antes de a água tomar o Cais, a Biblioteca, os hospitais. Cobras surgem aos montes nas áreas esvaziadas. Ratos e baratas que o Instagram não mostra. Uma cadeia que se alimenta do caos. Um homem rema sozinho para alimentar os animais. Ele não está em desespero, como eu. Ele tem a calma de quem se habituou a perder toda uma safra e recomeçar, do zero.
Mais de uma década atrás, eu vivia meio nômade e tinha um livro por vez, copiando os trechos de que mais gostava num pequeno caderno pautado de capa preta. Hoje de manhã, consegui abrir uma gaveta inchada pela água e dali recolhi o caderninho amolecido. Pude abri-lo apenas uma vez antes que se desmanchasse. Na minha caligrafia antiga, uma frase de Sidarta, do Hermann Hesse: "tudo que existe é necessário e pede apenas a minha aceitação". Admito que foi poesia, mas não foi nenhum consolo.
A água atingia nossos joelhos e vinha com força de correnteza quando deixamos o apartamento de minha irmã às seis da manhã. Para acalmar o pânico, eu dizia às crianças: “tá difícil só até a próxima esquina, dali para frente tá seco”. Mas a água chegava à próxima esquina bem antes de nós. E foi num dos trechos, após presenciarmos o barco resgatando uma idosa enrolada em cobertores e o homem pedindo socorro abraçado a um cão, que meu sobrinho fez a comparação com o filme “O Impossível”, sobre o tsunami de 2004. Dias depois, quando consegui acessar minha casa, a imagem que mais doeu foi a dos livros que não salvei. Viraram uma gosma e foram retirados com uma pá de construção.
Imagine o caos. Como um feed de vídeos ultra curtos rolando continuamente. Nenhuma imagem tem a capacidade de durar o suficiente para fazer sentido, mas o todo te perturba como o movimento de um carrossel macabro. Uma coleção de gifs. O cheiro é de morte. Já sentiu? Algo apodrecendo na umidade e você tentando respirar pela boca pra evitar o contato da sua narina. Estou comendo o cheiro da morte enquanto fujo de Porto Alegre. Sim. No início eu dizia que não, mas no fundo é uma fuga. Estou fugindo da morte sem olhar pra trás. O mundo ao redor girando, gira, gira, uma náusea sobe e me encolho dentro de mim.
Toda tragédia tem mais de uma face. Em Caxias do Sul, a terra não alaga, ela escorrega. Depois do temporal de 01 de maio, deslizamentos mudaram a geografia de alguns bairros e a cidade literalmente tremeu por excesso de água no solo. Mas foi em uma segunda de manhã que a tragédia ganhou rosto, nome, idade e família, quando fui abraçar uma amiga livreira que se despedia do irmão caçula, vítima da terra como tantas cidades foram vítimas da água. Depois daquele temporal, nenhum gaúcho saiu ileso.
Água pin pin pin pin pin pin pin piiiinnnn piiiiiinnnnnnn piiiiiiiiiinnnnnnnnnn pingando sobre nossos tetos, dentro das nossas casas. Nos nossos cérebros. Pingos agudos como facas, como forcas, como furos. Ela avança e avança e avança e penetra em tudo até mudar de cor. Até feder. Depois, uma hora, aquieta apodreSendo tudo ao seu redor. Então não fica nada. Ou melhor dito, tudo nada: livros, mesas, cadeiras, papéis, abajur, porta-lápis, poltronas, vasos com plantas. Depois, aos poucos, ela vai se retirando. Deixando a cor marrom e o cheiro, cada vez mais forte, que punça e punça e punça mais.
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