O liberalismo sempre teve dificuldade em justificar a propriedade da terra, já que, segundo Locke, o mundo foi dado à espécie humana em comum.
Locke acrescentou que a nós também foi dada a razão para fazer o uso mais proveitoso do mundo para a vida. E, sendo o corpo de cada um propriedade sua, assim seria o produto do seu trabalho.
Tanto quanto um homem possa cultivar a terra, tanto quanto ela será sua, mas só na medida em que os outros homens tenham o mesmo direito.
Assim como ninguém se ofende com quem toma água para matar a sede, ninguém pode se ofender com quem se apropria da terra para matar a fome, desde que haja água e terra suficientes para todos.
Como não chove terra, a questão fundiária se impôs.
A filosofia política perdeu interesse pelo assunto, bem como a economia neoclássica.
O tema foi recuperado a contrapelo pela sociologia jurídica.
Léon Duguit propôs um giro que parte não mais dos direitos individuais, mas dos deveres sociais.
Numa sociedade fundada na interdependência social, assim como os que gozam de liberdade têm o dever de promover o desenvolvimento dessa interdependência, os que detêm propriedade também têm o dever de fazê-lo.
Firmava-se o conceito de função social da propriedade, previsto na Constituição de 1988, que agora o senador Flávio Bolsonaro quer alterar para pior.
O Brasil começou a reforma fundiária, agrária e urbana, apenas neste século. Como em outros temas, desperdiçamos o século passado.
A rigor, a abolição da escravidão deveria se fazer acompanhar da reforma agrária. O inchaço das nossas cidades tem menos a ver com o processo de industrialização do que com a expulsão de negros do campo, entregue ao latifúndio desde a Colônia. Desta forma, o problema fundiário ganhou outras dimensões: urbana e ambiental.
Aos velhos problemas do campo, a monocultura agrotóxica e o desmatamento pecuário-extrativista, somaram-se os da cidade: a falta de saneamento, de tratamento de resíduos sólidos e de mobilidade sustentável.
Num e noutro caso, a terra alvo da grilagem e das milícias, seja no Pará, seja em Muzema (RJ).
Pela Constituição, o descumprimento da função social da propriedade legitima a cobrança “progressiva no tempo” do IPTU, trabalho iniciado em algumas cidades.
Propusemos, na campanha presidencial, que este princípio fosse estendido ao campo quanto ao ITR de terras desmatadas ou improdutivas, o que daria consequência plena ao conceito.
Se a agenda de democratização do acesso dos pobres à terra, rural e urbana, não for retomada, dificilmente recolocaremos o Brasil na rota do desenvolvimento sustentável.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.