Nascido em Santo Anast�cio (SP), em 1978, � autor de 'Esquim�' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Caf�
Pedro Piccininni | ||
Ilustra��o da coluna Prosa/Poesia de Fabr�cio Corsaletti de 6.ago.2017 |
Sonhei que estourava a Terceira Guerra Mundial, dessa vez o Brasil n�o era poupado, o sangue coalhava na avenida Paulista, mas eu tinha uma ideia genial pra resolver o problema da fome (minha, pelo menos): estocar Nh� Benta. Ent�o eu comprava toda a Nh� Benta de uma farm�cia antiga (altas prateleiras de madeira) e levava pra casa. Se n�o tem p�o, coma Nh� Benta. No entanto s� fui acordar muito depois, com a guilhotina implac�vel da manh�.
Agora uma hist�ria real.
De carro, meu amigo o poeta Alberto Martins me oferece carona pro trabalho. Assim a gente conversa um pouco, ele diz. Aceito, claro. Uma das tr�s melhores coisas de S�o Paulo � conversar com esse amigo. Ele diz conhe�o um caf� no caminho, dentro de uma galeria de arte, d� tempo de fazer uma parada? Acho que sim. Oba. Vamos l�.
O lugar � um armaz�m vermelho-ferrugem que lembra Berlim e se destaca entre as lojas cinza de letreiros banguelas diante das quais flanelinhas e n�ias circulam e caem. Um o�sis de severidade e bom gosto no meio da... —-ah, pol�ticos brasileiros, desapare�am da minha cabe�a. E viva os tradutores de poesia, os professores do Ensino Fundamental e o doutor Drauzio Varella, que ajuda tanta gente a viver melhor.
Entramos sem bater; olhos conferem nossas caras brancas, nossas camisas semi-novas, nossas barrigas dilatadas; passamos por uma sequ�ncia de salas escuras —algumas exibem telas abstratas; outras, v�deos sobre os �ndios da Amaz�nia. Mas o espa�o coberto termina e sa�mos num p�tio cheio orqu�deas, como dizer?, perturbadas. Em p�, duas figuras magras e lindas, um cara e uma mina, tomam caf� fumando Marlboro. O caf� � por aqui?, meu amigo pergunta. Eles gaguejam de t�dio, n�o chegam a nos conceder uma frase, o cara indica o caminho com um polegar pau mol�o —e vamos mais pro fundo do terreno.
Uma porta. Meu amigo abre. � uma cozinha. Mesa, quatro cadeiras, um balc�o atolado de envelopes, uma pia com um prato e uma faca sujos e uma cafeteira el�trica ligada, ainda com um resto de caf�. Me pergunto se aquele � algum novo conceito de cafeteria; se a cafeteira el�trica, depois do caf� de coador, voltou � moda em Williamsburg e por isso est� bombando na Zona Oeste paulistana. Meu amigo diz que estranho, n�o lembro de ser assim. C� tem certeza que era aqui mesmo?
Ele d� risada e enche duas x�caras. Sentamos e fingimos que estamos � vontade. Falamos baixo da situa��o pol�tica. Qualquer outro assunto parece irrelevante.
Vem a empregada cor de empregada vestida de empregada —somos os senhores de escravos do futuro, o Brasil � um clich� diab�lico etc. Ela diz oi tudo bem tomando um cafezinho? Eu digo oi tudo bem de quem � o caf�? C�s s�o amigo do Marco? O Marco nunca chega antes das tr�s.
Eu gostaria de pagar a conta e mudar hoje mesmo pra Montevid�u. Mas n�o tem conta pra pagar. Agradecemos � empregada, passamos de novo pelos clones de si mesmos e l� fora nosso carro foi roubado.
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A coluna "Prosa/Poesia" � publicada aos domingos a cada 15 dias na "revista s�opaulo"
Keiny Andrade/Folhapress | ||
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