Nascido em Santo Anast�cio (SP), em 1978, � autor de 'Esquim�' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Escura
Pedro Piccinni | ||
� uma loja grande e escura no centro da cidade, uma quadra abaixo da esta��o de trem. Quando visito a fam�lia, entre um churrasco e outro vou at� l� pra olhar as g�ndolas atulhadas de baldes, bacias, chaves de fenda, garfos, colheres, facas "de folha", afiadores de v�rios modelos, pedras de amolar, parafusos, porcas, pregos, chap�us de palha, borzeguins, rolos de corda, rolos de arame liso e farpado, mangueiras de borracha, churrasqueiras, copos, pratos, espetos, pegadores, canecas, canivetes, fac�es, balaios, enxadas, carriolas, rastelos, p�s, moringas de barro (com adornos vermelhos), lat�es de lixo, sacos de cimento, sambur�s, anz�is e varas de pescar.
�s vezes volto pra casa dos meus pais com objetos que dificilmente vou conseguir usar em S�o Paulo, e que v�o dar trabalho pra acomodar no �nibus; mas em geral s� compro mesmo um dos afiadores de faca, pra dar de presente a algum amigo cozinheiro, e uma das tais facas de folha, que enferrujam de maneira pouco higi�nica, embora peguem rapidamente o melhor corte.
� uma loja grande e escura, eu dizia, no centro da cidade onde nasci, e dentro dela me sinto protegido, distante da neurose e dos problemas, sonhando com uma das vidas que n�o tive e me esquecendo da vida real em que me perco enquanto a atravesso e sou por ela atravessado.
Tem meia d�zia de atendentes, conhe�o dois ou tr�s pelo nome, e o dono do lugar � sempre simp�tico comigo —j� conversamos mais de uma vez sobre faroestes cl�ssicos. Sabe que gosto do seu neg�cio, que se me mudasse de novo pra l� seria seu fregu�s. Mas tamb�m sei que me veem como um tipo que h� 20 anos vive na capital, que a essa altura � mais metropolitano que interiorano, um cara talvez meio esquisito, ou apenas rid�culo, que se interessa por coisas de que n�o precisa, coisas das quais n�o entende nada.
De vez em quando penso em largar tudo e virar sitiante. Me enfiar no meio do mato e ficar cavoucando; passar o dia sem falar uma palavra e de noite ouvir m�sica sem letra na varanda. Mandar e-mails, chorar um pouco, desejar morrer.
De vez em quando penso que no fundo o que eu queria era ser artista pl�stico. Ter um ateli� cheio de ripas de madeira, latas de tinta, pinc�is, serrotes, martelos, goivas. Triturar, colar, secar, pendurar na parede. Compor no espa�o —n�o no tempo.
Mas acho que estou exagerando um pouco.
Da �ltima vez gastei uma eternidade olhando uma caneca de alum�nio. N�o a coloquei na cesta de compras. Pra ser sincero, mal consegui toc�-la. De repente minha exist�ncia pareceu absurda, e eu teria que trocar de roupa e de pele antes de usar aquela caneca industrial. Ou pelo menos pintar de outra cor as paredes da sala. Era trabalho demais, desisti.
Agora tenho uma caneca imagin�ria —que brilha na sombra quando bebo �gua.
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