Nascido em Santo Anast�cio (SP), em 1978, � autor de 'Esquim�' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Natal
Ilustra��o Pedro Piccinni | ||
PARDAIS
Minha av� tirava a toalha do caf� da manh� sem deixar que as migalhas de p�o e bolo ca�ssem no ch�o da cozinha. Sa�a pela porta de tr�s, que dava pro quintal e ficava sempre aberta, presa por uma pedra, e batia a toalha no corredor de lajotas que circundava a casa toda, menos na parte da frente, onde havia dois canteiros de margaridas separados por uma escada, que ia da cal�ada � porta principal. Quando voltava pra cozinha, os pardais desciam e come�avam a ciscar. Eram dezenas ou centenas deles - minha av� era a Rainha dos Pardais. Havia ninhos por toda a franja do telhado, nos quatro flancos da casa, entre os caibros de madeira e as telhas vermelhas; palha enrolada � perfei��o por passarinhos (eu ficava louco com isso), cheia de ovos e pardaizinhos suicidas. Volta e meia um deles despencava l� do alto. Minha av� pegava o bichinho na m�o, beijava sua cabe�a, fazia o sinal da cruz e em seguida jogava o cad�ver no lixo. Eu tinha afli��o desses pardais ainda sem penas, de pele verde e viscosa, com a cabe�a grande, desproporcional. Mas adorava os pardais gra�dos comendo na lajota, os ninhos suspensos feito chap�us, o jeito da minha av� ir e vir pela casa, cantarolando, sempre dispon�vel, sem derramar uma l�grima, uma gota de suor. Quando ela morreu, escrevi um poema sobre a sua morte. Dizia que ela n�o tinha morrido: os pardais a tinham levado com casa e tudo pra algum lugar melhor. Era um poema ruim. A prova � que a casa continua l�, habitada por uns conhecidos da fam�lia que a compraram alguns meses depois. �s vezes, nas f�rias da faculdade, eu passava pela rua e, se n�o tinha ningu�m por perto, parava, botava as m�os nas grades e ficava observando. Em parte ao menos o poema tinha raz�o: os pardais foram viver em outro lugar.
ANT�O
Era negro o Papai Noel da minha inf�ncia. Curiosamente, isso nunca foi motivo de estranhamento pros moleques da nossa cidade, racista como qualquer cidadezinha do interior de S�o Paulo. Como qualquer capital do Brasil. Pelo contr�rio, estranh�vamos quando outro adulto qualquer, branco ou japon�s, vestia a roupa e o chap�u vermelhos e punha uma almofada idiota na barriga. Ach�vamos aquilo de uma falsidade intoler�vel, e logo algu�m reconhecia e desmascarava o impostor.
Certa manh�, entre o Natal e o Ano-Novo, fui sozinho pro Clube dos Banc�rios —que ficava no final de uma estrada de terra e onde a classe m�dia de Santo Anast�cio passava as tardes nadando e jogando futebol— e vi um velho gordo e negro, de olhos verdes e turvos de catarata, fumando um cachimbo sentado na varanda de uma casa de madeira sem pintura, com manchas de musgo nas paredes, telhado ca�do, quase escondida atr�s dos p�s de mamona. Era o Papai Noel. Desci da bicicleta e disse:
-Oi, Papai Noel!
Ele levantou e disse:
-�, menino, tudo bem? Entra. Como vai seu pai? Sua m�e t� trabalhando essa semana? Preciso passar l� pra arrancar esse dente —e abriu a boca com a m�o pra que eu pudesse ver direito.
Mais tarde descobri que seu nome era Ant�o.
Viveu ainda muitos anos depois que deixei de acreditar em Papai Noel.
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