Nascido em Santo Anast�cio (SP), em 1978, � autor de 'Esquim�' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.
Bola
No lindo gramado diante do mar, a pousada tinha duas pequenas traves de PVC com rede e tudo, mas n�o tinha bola. N�o jogo futebol h� vinte anos, mas quando vi os golzinhos de bobeira fiquei com vontade de dar uns chutes. Pensei em comprar uma bola qualquer no centro da cidade. Depois lembrei de amigos com tornozelos e joelhos destro�ados em peladas de fim de semana e desisti.
Certa manh�, ao lado da espregui�adeira onde eu lia um romance deprimente, um pai e o filho de oito ou nove anos tratavam com excessiva delicadeza uma bola colorida. Pelo sotaque, eram argentinos. Quase levantei pra puxar conversa, contar que morei em Buenos Aires —com sorte me convidavam pra jogar. Mas tive pudor de atrapalhar aquele momento de intimidade entre pai e filho.
Ilustra��o Guazzelli | ||
� tarde, por�m, voltando de uma das praias do outro lado da ilha, topei por acaso com um saco de bolas em frente a uma papelaria. Pedi pro amigo que dirigia parar. Escolhi a mais firme, preta e branca, de borracha —um cl�ssico—, e ao entrar no carro n�o era mais o mesmo.
Com aquela bola simples e perfeita sobre as pernas, senti todo o peso de ser um homem respons�vel (h� quem duvide que eu tenha chegado a tanto) se evaporar no ar salgado e indiferente. Mudo, sem prestar aten��o no papo dos tr�s adultos que me acompanhavam, eu s� queria saber dos gols que faria dali a pouco —numa alegria paralela � das ondas. Meus 12 anos renasciam das cinzas. Meu corpo pesado estava tinindo de novo.
Na pousada, deixei o chinelo e a mochila com a namorada e corri pro campinho com a bola embaixo do bra�o.
O menino portenho estava l�, perdido, procurando alguma coisa atr�s do gol. Eram carac�is, que ele dispunha numa longa fila em cima da cerca de madeira que separava o gramado da praia. Perguntei se queria jogar. N�o respondeu. Chutei a bola pra ele e ele chutou de volta pra mim.
Combinamos as regras: gol s� dentro da grande �rea e defesa com as m�os s� dentro da pequena �rea —marcamos as linhas com chinelos e camisetas. Cinco vira, dez acaba.
O moleque era melhor do que eu imaginava e em poucos minutos estava 3 a 1 pra ele. Mas eu n�o estava ali pra brincadeiras. Fiz, n�o me orgulho, algumas faltas quase graves. E n�o consegui evitar uma gargalhada abjeta ap�s lhe dar um chap�u e marcar mais um. Placar final: 10 a 3 pra mim.
Ent�o seus olhos se encheram de l�grimas. Foi at� a cerca examinar os carac�is e na volta me desafiou a encarar outra partida. Disse que um dia seria jogador da sele��o e que nunca perdia pros amigos do pai, velhos e barrigudos como eu. Devia ser verdade, pois dessa vez ganhou de 10 a 0.
Um dos meus melhores chutes ele defendeu com um salto de tigre digno de um Neuer, o goleiro alem�o. Ao ficar em p�, disse:
- Piensan que soy arquero, pero soy jugador!
Esse momento de excessiva vaidade quase me fez reativar o modo agressivo-demente de antes. Mas agora o encanto estava quebrado e eu era apenas um tioz�o � beira de um enfarte brincando com um menino corajoso nas f�rias de ver�o. Sua m�e apareceu, nos apresentamos, fiquei sabendo que o meu amigo se chamava Bautista. Um bom nome de jogador.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade