A vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, informou ao Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro "acreditava sinceramente" que a cloroquina era um remédio eficaz contra a Covid. A esta altura a pandemia já matou mais de 670 mil pessoas no Brasil.
A doutora disse isso para respaldar o pedido de arquivamento das conclusões da CPI da pandemia. É direito da PGR acreditar sinceramente no seu pedido de arquivamento. Caberá ao STF decidir o que fazer com as denúncias.
Hoje, estima-se que de cada cem pessoas, 27 não acreditam que os astronautas americanos foram à Lua. Nesse grupo, 21 têm o ensino médio completo. Vinte em cada cem acham que a terra é plana.
Donald Trump também acreditava na cloroquina, mas abandonou a sua defesa. Bolsonaro continuou na pregação.
O relatório da CPI que a doutora prefere arquivar informa que no dia 24 de março de 2020 anunciou, em rede nacional, que "o vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará". Como? Talvez com a cloroquina. Voltou ao assunto no dia 24 de outubro: "no Brasil, tomando a cloroquina no início dos sintomas, 100% de cura." Na véspera haviam morrido 566 pessoas e o total de mortos estava em 156.528.
Bolsonaro tem uma queda por substâncias e iniciativas mágicas. Acredita nos efeitos econômicos milagrosos do nióbio e do grafeno. Chegou a anunciar que visitaria uma empresa de militares americanos que pesquisa a transmissão de energia elétrica sem fios. Seria um milagre para a Amazônia. Felizmente não foi à empresa.
Acreditar que a terra é plana, que o homem não foi à Lua e que a cloroquina controla a Covid, é um direito de cada um. Cardeais e Papas acreditavam em coisas desse tipo. Em 1.600 a Inquisição romana queimou Giordano Bruno por defender as ideias de Copérnico, para quem a Terra girava em torno do Sol. (A estátua de Bruno, no Campo das Flores, em Roma, informa: "Aqui ardeu a fogueira".)
Em 2020, Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde porque não acreditavam nas virtudes da cloroquina. Bruno metia-se com ocultismos. Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, nunca se meteram com mágicas e não foram queimados.
Um terraplanista convicto pode ter acreditado sinceramente que a cloroquina controlaria a Covid. A diferença entre ele e Bolsonaro está na persistência da convicção do capitão e, sobretudo, no fato de ter se baseado nessa crença sincera para demitir dois ministros, irradiando a superstição enquanto pessoas morriam. Registre-se que ninguém morreu porque o vizinho achava que a Terra girava em torno do Sol e, desde o fim da Inquisição, ninguém foi queimado por isso.
Existem dois tipos de ignorância. A plena e a aquela que mesmo podendo ser sincera, é instrumentalizada. Os cardeais que mandaram Giordano Bruno para a fogueira podiam acreditar que a terra era fixa, mas estavam interessados também em preservar seu poder.
Quando a Inquisição chegava à Bahia, os seus defensores queriam também tomar as propriedades dos judeus. No século 20, essa mesma instrumentalização alimentou o antissemitismo europeu.
Enquanto esteve na moda, a cloroquina pouco teve a ver com a sinceridade da convicção. A partir das evidências científicas da sua inutilidade, foi um instrumento político (e comercial em alguns hospitais e planos de saúde).
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