No Brasil, o dia 20 de novembro se expande em eventos voltados à conscientização acerca do passado, presente e futuro da população negra. Um dos eventos mais aguardados é o Troféu Raça Negra, que chegou neste ano à sua 21ª edição.
Realizado pela Universidade Zumbi dos Palmares e pela organização Afrobrás, o troféu é consolidado como um grande palco para a congregação da comunidade negra e para a celebração de pessoas negras e não negras que trabalham por um país com equidade racial.
Na Sala São Paulo, teatro que está entre os mais lindos do mundo, o magnífico reitor José Vicente deu início ao prêmio.
No início do evento, coube a Lenna Bahule, cantora moçambicana, fazer a mais bela execução do hino nacional que eu já testemunhei. No retorno à África, o hino finalmente encontrou a sua cara.
Essa edição teve como grande homenageada da noite a jornalista Glória Maria, morta em 2 de fevereiro deste ano —coincidentemente ou não, o dia em que sua mãe Iemanjá é festejada em todo o país.
Foi uma homenagem belíssima, que contou com a presença de suas filhas, Laura e Maria. Glória foi imensa e contribuiu de forma decisiva como um referencial positivo no imaginário de meninas negras que ligavam a televisão e a viam linda de cabelo crespo, competente e bem-sucedida. Uma mulher que libertou muitas de nós da prisão da baixa autoestima imposta pelo racismo.
Uma menção honrosa também foi feita ao rei Pelé, morto em 29 de dezembro do último ano. Seu filho Edinho subiu ao palco e, emocionado, disse como seu pai, sendo um rei negro em um país racista, representou um sonho para meninos e homens negros no país, mas não foi reconhecido como deveria na luta contra o racismo.
Entre as injustiças contra o rei, está a de que ele pouco teria denunciado o racismo. Não concordo com essa afirmação por uma série de fatores. A maior parte da sua carreira foi durante a ditadura. Na época em que reinou nos gramados, a imprensa não só era censurada como era branca.
Eram tempos de pleno domínio da teoria da democracia racial, crença de que no Brasil teria havido uma transcendência dos conflitos de raça e era um país onde brancos, negros e indígenas conviviam em plena harmonia e alegria.
Naquela época, um pronunciamento que destoasse desse coro não seria aceito pelo regime. Mas mesmo que Pelé se posicionasse, não haveria espaço receptivo para ouvi-lo, pois as raras pessoas no jornalismo negras ou conscientes, como Glória Maria, surgiriam tempos depois. Eram tempos difíceis, mas que, ainda diante disso, o rei conseguiu maneiras de vocalizar um novo mundo, como lembrou seu filho.
Que rei Pelé seja sempre visto como merecedor de todas as homenagens e que bom que o troféu fez esse reconhecimento.
Ao todo, foram 21 pessoas homenageadas. Em nome de todas, aproveito para destacar uma laureada, cuja premiação honra uma carreira brilhante. Falo de Alaíde Costa, precursora e lenda da bossa nova, que chega aos seus 88 anos, diva como sempre foi.
A premiação do troféu se soma a outros recentes reconhecimentos a essa gigante da música. Graças à iniciativa de uma marca pela reparação histórica —registrada nesta Folha, inclusive—, Alaíde se apresentou em setembro no prestigiado Carnegie Hall, em Nova York, com a presença de nomes da música brasileira.
O evento corrigiu uma injustiça cometida nos anos 1960, quando seu nome foi deixado de lado pelos contemporâneos da época que foram à Big Apple apresentar o ritmo musical aos americanos.
Eram outros tempos. Naqueles anos, Alaíde era excluída dos shows, inclusive de festivais de bossa nova que aconteciam no Rio de Janeiro, pelos que se tornaram cânones brancos do estilo musical.
Ser negro ou negra era quase um crime em si. Projetar-se com consciência negra como referência positiva para um público gigantesco, então, era um delito capital. Sendo uma mulher negra retinta e consciente, quanto talento e criatividade essa mulher fenomenal precisou ter para construir uma carreira que perdura até hoje. Merece todos os aplausos.
Falta muito para a população negra atingir um padrão de vida de qualidade na sociedade brasileira. Mas, olhando a trajetória dos mais velhos, podemos dizer que falta menos.
Os tempos mudaram e o Troféu Raça Negra é uma prova disso. Vida longa à premiação, para que possamos festejar e aplaudir aquelas pessoas que, como Glória, Pelé e Alaíde, fazem deste país um lugar sobre o qual podemos sonhar.
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