O candomblé é uma religião brasileira que, desde sua formação, tem na mulher uma figura central na chefia da comunidade de axé, os terreiros, e na mitologia. E, desde muito tempo, feministas negras pensam suas reflexões críticas a partir de referências de orixás femininos e de figuras do panteão iorubá.
É bonito pensar a maternidade a partir de Oxum, por exemplo, a orixá das cachoeiras. Oxum usa um belo espelho nas mãos, o reflexo de si mesma significa a importância do autocuidado, de olhar para si.
Há uma história sobre ela que diz: "Antes de cuidar dos seus filhos, Oxum lava suas joias". Oxum nos ensina que ser mãe não é esquecer de si, como impõem as sociedades patriarcais, mas cuidar de si primeiro para poder cuidar bem de seus filhos.
Assim como também é bonito pensar a partir de Iansã, a dona dos ventos, raios e tempestades. Iansã, como dizem os mais velhos, pinga de vermelho o mercado, vai trabalhar para garantir o sustento da família. Ela teve nove filhos e, ao sair para trabalhar, deixa dois chifres de búfalo, uma de suas representações, com eles. Se eles precisarem dela, é só baterem os chifres que ela vem ao socorro deles na velocidade do vento.
Iansã nos ensina que é possível ser uma mãe trabalhadora e protetora, que é possível romper com essa visão patriarcal que julga as mulheres que buscam suas realizações como mulher para além da maternidade.
Em "A Invenção das Mulheres: Construindo um Sentido Africano para os Discursos Ocidentais de Gênero", a pensadora Oyèrónké Oyewùmí desenvolve um trabalho fundamental sobre como pensar em gênero a partir da oposição hierarquizada entre homem e mulher não faz sentido na lógica iorubá, ficando isso evidente pela linguagem e pela forma de tratamento.
Para ela, é muito mais próxima a ideia de senioridade, de respeito às pessoas mais velhas, indiferente de serem homens ou mulheres.
Iyá (mãe) e babá (pai) transcendem a maternidade e paternidade biológica e indicam a posição de pessoa mais velha que exerce, pela idade e caminho percorrido pela vida, a posição de sábia sobre as pessoas mais jovens.
As grandes feiticeiras estão, sim, na religião, e podemos perceber sua representação nas avós, nas mães que muito viveram, seja em estado de cólera, seja em serenidade, quando falam, e todos se calam, deixando no ar ensinamentos e enfrentando com sabedoria as desigualdades estruturalmente postas.
Como argumentam Sueli Carneiro e Cristiane Abdon Cury no texto "O Poder Feminino no Culto aos Orixás", "discutir, portanto, a mulher no candomblé nos remete imediatamente às figuras míticas femininas que compõem um perfil da compreensão que o sistema mítico do candomblé possui da condição feminina. As ìyá mi, ancestrais míticas, são a máxima representação do poder feminino.
Também são chamadas de ajé, que em iorubá significa bruxa ou feiticeira".
Dentre as ajés, a mais temida é ìyá mi Oxorongá. A partir dessa feiticeira, que com uma palavra amaldiçoa de morte, é possível compreender como essa representação se distancia do olhar ocidental, de identidade vitimada.
"Pronunciando-se o nome desta orixá, a pessoa que estiver sentada deve se levantar, e quem estiver de pé fará uma reverência, por se tratar de uma orixá terrível a quem se deve respeito. Pássaro africano, Oxorongá emite um grito horríssono, de onde provém seu nome. O símbolo dessa orixá é a coruja dos augúrios e presságios. Ìyá mi Oxorongá é a dona da barriga, e não há quem resista a seus ebós fatais", afirmam as autoras.
Nos terreiros por todo o país são cultuadas também as pombagiras, entidade que atende por vários nomes, sendo um dos mais comuns Maria Padilha. Sua representação é de uma mulher livre, sensual, que ao mesmo tempo conquista e espanta qualquer homem.
Figuras que foram demonizadas a partir de um olhar cristão, mas que são uma síntese do poder das mulheres, o desejo por transcendência de limites impostos. Quem for vê-la em uma das giras, vai ouvir uma das cantigas mais conhecidas. "Arreda, homem, que aí vem mulher. Maria Padilha, rainha do candomblé."
As feiticeiras de matrizes africanas são a antítese de toda negação de transcendência comportamental, política, ética que mulheres possam representar. A partir delas é possível pensar em uma prática transformadora das relações coloniais presentes até hoje.
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