Quando soube da morte da jornalista Gloria Maria, senti um misto de tristeza e gratidão. Tristeza, obviamente pela partida, mas o segundo sentimento sobressaiu. Fui uma adolescente negra nos anos 90 e ver a imagem daquela mulher negra, de pele escura, numa posição de destaque, entrevistando grandes nomes, me trouxe uma noção de pertencimento.
Foram muitas as homenagens merecidas que a jornalista recebeu, detalhes sobre os marcos que atingiu na carreira, os mais variados países a que foi e as reportagens mais icônicas foram lembradas. Neste texto, no entanto, gostaria de descrever o que Gloria significou como signo de vitória para as mulheres negras.
O intelectual Osmar Teixeira Gaspar, em sua obra "Mídias: Concessão e Exclusão", elaborou um estudo aprofundado sobre a invisibilidade da população negra na mídia brasileira. Como professora do curso de jornalismo de uma universidade, o pensamento de Gaspar permeou boa parte da disciplina. O autor defende que há uma censura a essa parte da sociedade, sobretudo em relação às mulheres negras, no que diz respeito à legitimação de estereótipos, ou seja, a presença da população negra é quase inexistente ou, quando presente, em lugares que reforçam visões coloniais.
"Como exemplo, uma análise de parte da mídia, a ser discutida neste livro, aponta para uma exacerbada discrepância entre a visibilidade da mulher branca e a da mulher negra no Brasil. Tal oposição, presente nas várias revistas analisadas, denuncia uma sistemática invisibilidade das mulheres negras. A pesquisa indica não se tratar de uma preferência ou opção mercadológica de editores, agências de publicidade e seus anunciantes, mas de uma inequívoca opção pela exclusão da mulher negra, fundada em uma ideologia racista" (págs. 26/27).
Gaspar argumenta que a veiculação sistemática da imagem de pessoas negras, em geral, e de mulheres negras, em particular, representando signos de derrota, imagens subalternizadas ou violentas reforça no imaginário coletivo a impossibilidade de pessoas negras existirem plenamente e afeta de forma dolorosa a construção de suas subjetividades.
A presença de Gloria Maria na mídia hegemônica ajuda a transcender muitas barreiras simbólicas. Ela representava um signo positivo, uma possibilidade de existência vitoriosa, digna, humana. Uma força imagética que ajudou a quebrar, como afirma Audre Lorde, o espelho de imagens distorcidas.
Em uma época de estigmatização de cabelos crespos, ela aparecia usando seu "black power" em entrevistas, reafirmava seu desejo e seu posicionamento por liberdade, recusava-se a se encaixar nos moldes que criam para mulheres negras que ascendem. Não seguiu o que se espera dos papéis impostos às mulheres, quebrou paradigmas sem se afirmar como ativista. Sempre me admirou a forma como Gloria não cedeu à pressão de certas militâncias; viveu segundo o que acreditava. Apenas foi ela própria e foi muito.
Pessoas que sempre se enxergaram positivamente talvez não consigam compreender a profundidade dessas palavras, mas nós, que crescemos num deserto de representação, vimos em Gloria a possibilidade de ter asas e poder sobrevoar, ver adiante. De seguir reivindicando mais espaços.
Vi muitas homenagens de pessoas próximas a ela e a que mais me emocionou foi a de seu amigo Bruno Astuto, padrinho de uma de suas filhas. Eu me emocionei vendo fotos de viagens, Gloria sorrindo, se divertindo em festas, mas o que mais me chamou a atenção foi perceber que ela estava cercada de amor.
É muito significativo poder ver uma mulher negra bem-sucedida, que foi feliz e amada. Em uma sociedade na qual ainda lutamos pelo direito à humanidade, mais uma vez Gloria reforça signos positivos, expande o espectro de possibilidades.
Juliana Borges escreveu que "uma mulher negra feliz é um ato revolucionário". Gloria Maria, então, promoveu muitas delas para além de seu papel como jornalista. Vê-la feliz em muitos momentos faz a gente relembrar que a felicidade é um direito. Pessoalmente, as imagens de Gloria trouxeram cura para aquela adolescente dos anos 90 que tentava se encontrar e paz para a mulher que sou hoje.
Lembro de uma frase dita por Grada Kilomba em uma entrevista recente: "Quero ter a liberdade humana de ser eu". Fui impactada por essa afirmação e a entendi como uma busca constante.
Gloria Maria transcendeu a busca, foi uma das mais lindas afirmações metafísicas da liberdade.
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