Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Compreendi que para ser doce é preciso ter sabedoria

Não temer a tristeza é fundamental para não engessar uma imagem falsa de felicidade

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Enquanto escrevo esta coluna, escuto a música "Warm in december" cantada pela jovem cantora de jazz Samara Joy, vencedora do Grammy na categoria revelação.

Não a conhecia até então, mas fiquei encantada pela voz e atitude. É muito bom quando a vida nos surpreende com coisas boas. Para muitas pessoas pode parecer bobagem ficar feliz por descobrir uma nova cantora, mas sou daquelas pessoas que apreciam o simples e belo. Gosto do cheiro da terra após um dia de chuva, abro um sorriso quando uma borboleta vem me visitar, sorrio quando o marcador de página que coloquei no livro não saiu do lugar. O prazer das coisas simples, as grandes dádivas que acontecem quase sem fazer barulho. O que seria de nós sem as possibilidades de abstração e sublimação?

Contemplar o mar sem pressa, ficar dias sem usar as redes sociais, reler por acaso o trecho de um livro que nos marcou. Em tempos de streaming e playlists, pode ser emocionante ser surpreendida com uma música que toca no rádio do carro ou com um filme enquanto se muda de canal com o controle remoto. Receber uma ligação de uma pessoa que se ama, se perder e encontrar um amigo no caminho. Observar uma planta crescer, admirar a beleza de uma noite de Lua cheia, alguém cozinhar nossa comida preferida sem que gente estivesse esperando por isso. A beleza do cotidiano que passa despercebida por olhos apressados. A beleza de conhecer uma nova artista em vez de se apegar a uma ideia que nega o desconhecido.

Ao centro da ilustração, entre folhas rosas e azuis, uma mulher dança e faz uma coreografia de jazz. Ela é negra, tem cabelo black power loiro, usa uma blusa azul clara e uma calça vermelha clara, com listras vermelhas escuras.
Ilustração de Aline Bispo para a coluna de Djamila Ribeiro de 9.fev.23 - Aline Bispo

Faz algum tempo que fiz a escolha de enxergar o belo para contrapor a aspereza da vida. Não é por ingenuidade ou comportamento "Poliana", o que não gosto; foi a descoberta de um antídoto contra a amargura do mundo.

Quando a minha filha era menor, um dia ela me disse que gostaria de ter o coração meio amargo. "Se o coração for doce demais, mãe, as pessoas podem nos fazer de bobas, e se for amargo demais, a gente vive uma vida triste. Eu acho que o melhor é ter o coração meio amargo, na dose certa." Achei muito engraçado na época, mas igualmente interessante.

Após algumas decepções na vida, precisei compreender que ser doce exige ter sabedoria, mas também, como alguém que gosta de chá de boldo, sei que o amargo também cura na medida certa. Porém, a doçura ainda é algo que me encanta. A delicadeza dos gestos. São encantadoras as pessoas que olham nos olhos daquelas que conversam com elas, aquelas que guardam o celular para dedicar atenção ao seu interlocutor e, caso precisem usar o aparelho, dizem "Desculpe, preciso responder a uma mensagem" e logo que o fazem voltam a se entregar à conversa. São doces aquelas pessoas que se interessam pelo outro e não monopolizam a conversa somente falando de si ou que usam suas réguas para medir o mundo. São doces aquelas que se oferecem para dividir o guarda-chuva, respeitam a fila, aguardam serem chamadas, não cospem opiniões não requisitadas, ao se despedir dizem: "Envie uma mensagem quando chegar".

O livro "As belas imagens", de Simone de Beauvoir, foi muito marcante para mim. Exige um certo empenho enxergar para além de belas imagens. Com o passar do tempo e maturidade de um coração doce na dose certa, a gente tenta compreender o que faz com que certas pessoas sejam assim. Muitas não tiveram repertório diferente, outras se comprazem nesse lugar ou se apaixonam pelas belas imagens construídas.

É triste constatar que pessoas que amamos acabam se tornando meramente imagens e o remédio para não cair na amargura é aceitar o fim dos ciclos. Agradecer pelos bons tempos em vez de se apegar a uma visão cristalizada, muitas vezes distorcida ou mesmo criada por nós. Não ter medo de sentir a tristeza é fundamental para não engessar uma imagem falsa de felicidade, oca, sem vida. Aceitar a derrota de algumas batalhas de cabeça erguida, como dizia a minha avó, ter a coragem de parar de fingir o que não se é. Outros caminhos para o meio amargo.

Claro que há muitos problemas no mundo, tristezas, dores. Já que não podemos escapar, que um samba de roda, uma gentileza despretensiosa, a alegria de matar a saudade de alguém possam nos curar da amargura. Um sorriso de criança, uma brisa num dia quente, vislumbrar a imensidão do mar. No fim, como diz a música cantada por Joy, o que podemos querer, muitas vezes, é sentir o calor em dia frio.

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