Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades

Não ao marco temporal, sim à teoria do indigenato

Constituição de 1988 garantiu que o real parâmetro para a demarcação das terras indígenas no Brasil é o direito originário, existente desde 1680

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Alcilene Bezerra da Silva

Coordenação do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) Regional NE

Daniel Maranhão

Assessor jurídico CIMI (Conselho Indigenista Missionário) Regional NE

O Brasil tem sido o país que cria leis com o objetivo de desfazer outras leis, em especial aquelas que garantem os direitos indígenas e a proteção do meio ambiente, abrindo espaço para os empreendimentos do capital econômico que avançam de forma predatória sobre a natureza e a vida daqueles que a protegem.

A tese do marco temporal é oriunda do mesmo Supremo Tribunal Federal (STF) que hoje tem o poder para decidir por esta ou pela teoria do indigenato. Caso aprovado o marco temporal, será mais uma grande violência contra os povos indígenas. Significará legitimar a desproteção, as mortes, as expulsões e a abertura dos territórios para exploração econômica desenfreada, pondo em ainda mais risco a sobrevivência desses povos e dos biomas brasileiros.

Essa tese pode impactar negativamente mais de 800 terras indígenas e até mesmo desencadear processos de revisão de terras já demarcadas e regularizadas, isto é, será uma verdadeira catástrofe para os primeiros habitantes do que hoje se chama Brasil.

Indígenas bloqueiam a rodovia Fernão Dias em protesto contra votação do marco temporal - Reprodução/TV Globo

Atualmente, os três Poderes do Estado brasileiro estão envolvidos com o marco temporal.

O Executivo, por meio do parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que o atual governo já deveria ter revisto, assim como seu posicionamento pela AGU nos autos do RE 1.017.365/SC.

O Judiciário, pelo julgamento do referido RE, com repercussão geral no caso do povo indígena Xokleng, o qual deve voltar à pauta do STF em até 90 dias.

E o Legislativo, pelo famigerado PL 490\2007, aprovado na Câmara e agora no Senado com o número 2903/2023.

Em nítida escolha do poder constituinte e como resultado da luta dos povos indígenas, porém, a Constituição de 1988 garantiu em seu artigo 231 que o real parâmetro para a demarcação das terras indígenas no Brasil é o direito originário, existente desde 1680, que se fundamenta na teoria do indigenato, a qual dispõe que o direito aos territórios tradicionalmente ocupados é um direito congênito dos povos indígenas.

O direito ao território tradicional é um direito fundamental, ou cláusula pétrea da Constituição, isto é, não é passível de sofrer mudanças ou retrocessos, já que os direitos territoriais indígenas são, conforme o art. 60, § 4º, inciso IV, direitos e garantias individuais dos povos indígenas.

Cerca de 80% da biodiversidade mundial é protegida pelos povos originários. Esses povos concebem os elementos da natureza não como meros objetos a ser consumidos, mas sim como seres que, com eles, coabitam este ambiente e que são centrais em suas culturas e cosmovisões.

A mesma ideia está refletida nos conceitos de direitos da natureza e de biocentrismo, que partem de uma outra ética ambiental, com a qual nossa sociedade deveria aprender. Mas, ao mesmo tempo em que enfrentamos os desafios das mudanças climáticas, as populações que mais protegem a natureza estão fortemente ameaçadas pela tese e projeto genocida do marco temporal, que pode dizimar povos, seus territórios e acabar com o meio ambiente.

A pergunta que fazemos é: até quando os povos indígenas terão seus direitos negados? Quando esses povos terão paz e segurança jurídica? Em vez de fragilizar os direitos dos povos indígenas e da natureza, o Brasil precisa garanti-los e recuperar efetivamente os biomas, assim como investir em educação acerca dos direitos humanos e dos direitos indígenas —tanto aqueles previstos na Constituição de 1988, quanto aqueles que constam nas legislações internacionais como a Convenção 169 da OIT, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção Americana de Direitos Humanos, na Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas e nos relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e nas sentenças de mérito da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

É imperioso que o STF cumpra sua responsabilidade de Corte Constitucional e refute a tese inconstitucional do marco temporal, reforce a teoria do indigenato, do direito originário dos povos indígenas a seus territórios, e que estes sejam devidamente demarcados e protegidos como garante a Constituição Federal de 1988 e demais garantias internacionais.

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