Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu África

Perdendo o arco-íris

Mito nacional fundado por Nelson Mandela vê refletida sua decadência nas eleições

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A África do Sul vai perdendo seu maior tesouro, que não é formado por minas de ouro, platina ou diamantes mas pelo mito de sua refundação: o "país do arco-íris". Foi Nelson Mandela que o formulou, na hora do desmantelamento do apartheid, como ferramenta para alcançar a unidade nacional e a estabilidade política. Três décadas depois, as eleições gerais de 29 de maio refletiram sua decadência. Será possível, ainda, restaurá-lo?

O "país do arco-íris" destinava-se a curar a ferida hemorrágica da divisão entre negros e brancos mas, também, a prevenir divisões entre os diferentes grupos etnolinguísticos reunidos num território nacional inventado pelo imperialismo europeu. O Congresso Nacional Africano (CNA), espinha vertebral da nova África do Sul, venceu todas as eleições do pós-apartheid com mais de 60% dos votos. Nesta última, porém, perdeu sua maioria absoluta, retrocedendo para 40%. O desastre eleitoral não é a causa, mas a consequência da decadência do mito refundador.

Eleitor examina as cédulas de papel em dia de eleição em Joanesburgo, na África do Sul
Eleitor examina as cédulas de papel em dia de eleição em Joanesburgo, na África do Sul - Michele Spatari - 27.mai.24/AFP

A história do pós-apartheid biparte-se ao meio. Nos 15 anos iniciais, o país experimentou taxas decentes de crescimento econômico e, apesar do trágico negacionismo durante a pandemia de Aids, conseguiu reduzir a pobreza e as desigualdades sociais. Depois, nos 15 anos seguintes, a partir da eleição de Jacob Zuma, em 2009, ingressou no túnel do declínio econômico e social.

O CNA foi infectado pelo vírus da identificação do partido com o Estado. Sob Zuma, o aparelho estatal foi capturado por máfias empresariais ligadas ao grupo político do presidente, especialmente os irmãos Gupta, um nome que tornou-se sinônimo de favoritismo e corrupção. A ineficiência administrativa e o desvio em massa de recursos públicos refletiram-se na ruína das infraestruturas, no desemprego e na criminalidade crescentes. Hoje, os sul-africanos convivem com apagões rotativos diários de até 4 horas. Cyril Ramaphosa, eleito em 2019, não conseguiu conter a espiral declinista.

A crise espelha-se no sistema partidário que emergiu das eleições. O segundo maior partido, com 21% dos votos, é a centrista Aliança Democrática (AD), oriunda do partido branco anti-apartheid fundado em 1959. A AD governa o Cabo Ocidental desde 2009 e a competência administrativa demonstrada na província propiciaram-lhe avanços em metrópoles que figuram como bases do CNA. Contudo, refém da tradição de partido branco, sua votação nacional permaneceu estagnada durante a última década.

O segundo e o terceiro partidos surgiram de cisões do CNA. O ex-presidente Zuma, condenado em processos por corrupção, fundou o MK (Lança da Nação), um partido baseado no nacionalismo zulu que obteve surpreendentes 15% dos votos, quase todos na província do Kwazulu-Natal, onde o CNA foi dizimado. Julius Malema, antigo líder da organização de juventude do CNA, fundou o EFF (Combatentes pela Liberdade Econômica), um partido articulado em torno do nacionalismo negro que não atingiu 10% dos votos. As duas cisões expressam rupturas populistas com o mito do "país do arco-íris".

O programa do EFF exige a expropriação revolucionária de terras e empresas dos brancos, o que conduziria a África do Sul ao precipício no qual, sob Robert Mugabe, atirou-se o Zimbábue. Zuma reproduz, com ênfase menor e nenhuma convicção, as conclamações de Malema. No fundo, tanto um quanto o outro miram a captura do aparato político do CNA – e, por isso, propõem uma coalizão de governo precedida pela marginalização de Ramaphosa.

O "arco-íris" traçava um caminho de reformas sociais baseadas na unidade nacional e numa democracia liberal capaz de assegurar a pluralidade política e a independência do Judiciário. Uma coalizão oficial ou informal entre o CNA e a AD seria uma tentativa de restaurar o mito refundador. Já uma coalizão com Zuma ou Malema equivaleria à segunda morte de Mandela.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.