Avi Shlaim serviu no exército israelense, antes da guerra de 1967, mas o abandonou depois dela, passando a defini-lo como "a força policial repressiva de um poder colonial brutal". O historiador de Oxford aplica a Israel o qualificativo escolhido pelo B’Tselem, respeitada organização israelense de direitos humanos: "Estado de apartheid". No seu aniversário de 75 anos, que coincide com o Nakba palestino, a opinião dos outros tornou-se a principal questão de segurança nacional para o Estado judeu.
Israel travou três guerras gerais contra os vizinhos árabes. Hoje, beneficia-se de um nível inédito de segurança geopolítica, que deriva de sua pujança econômica, superioridade militar e estabilização diplomática. A paz com o Egito (1979) e a Jordânia (1994) e os Acordos de Abraão (2020), com os Emirados Árabes, o Bahrein, o Marrocos e o Sudão, suprimiram o espectro de uma aliança árabe anti-israelense. A implosão da Síria e a tempestade interna no Irã completam a paisagem. O inimigo existencial de Israel é ele mesmo.
Segundo Shlaim, a história israelense divide-se em duas partes, separadas pela Guerra dos Seis Dias. A ocupação dos territórios palestinos espalhou o vírus do colonialismo por toda a sociedade israelense, convertendo o Estado em ferramenta do movimento de colonos judeus estabelecidos na Cisjordânia. Israel infectou-se, então, de "intolerância, fanatismo religioso, xenofobia e islamofobia".
A análise do historiador padece de incongruências. Sua tese de uma inflexão decisiva em 1967 convive precariamente com sua proposição de que o sionismo já nasceu como movimento expansionista de colonos. A noção de um "pecado original", que empurraria Israel numa direção inevitável, é uma explicação sedutora para a ascensão do atual governo de Netanyahu, com seu séquito de supremacistas judaicos e seu projeto de destruir a independência da Corte Suprema. Contudo, utiliza-se aí o método fácil de racionalizar o passado a partir do presente.
A narrativa de Shlaim tende a ignorar o papel desempenhado pelos dirigentes dos países árabes na evolução de Israel e a minimizar o valor da democracia israelense. Paradoxalmente, o Estado judeu oferece, à sua minoria de cidadãos árabe-palestinos, direitos políticos inexistentes nas tiranias impostas pelas administrações palestinas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. A ofensiva de Netanyahu contra a Corte Suprema destina-se, antes de tudo, a cancelar tais direitos –ou seja, a implantar realmente um Estado de apartheid.
Apartheid tem nítido significado político, oriundo da trajetória da África do Sul: é a negação de direitos de cidadania aos cidadãos de um país. Mas os palestinos dos territórios ocupados não são cidadãos israelenses. A classificação de Israel como "Estado de apartheid" veicula, de modo oculto, o objetivo de criação de um Estado único, binacional, desde o rio Jordão até o Mediterrâneo –ou seja, de fato, a eliminação do Estado judeu. A ruptura com a ideia da convivência de dois Estados soberanos– Israel e um Estado Palestino –é o pátio para onde convergem uma ativa corrente de esquerda e a extrema direita sionista.
Entretanto, Shlaim tem razão ao enfatizar a incompatibilidade entre democracia e ocupação. No meio século de ocupação dos territórios palestinos, Israel tornou-se algo como um "Estado securitário" e experimentou a contestação crescente de seu arcabouço jurídico original. Os extremistas sombrios que têm assento no gabinete de Netanyahu não são estilhaços periféricos do Estado judeu, mas cicatrizes profundas na sua identidade política. O eventual predomínio deles coloca em risco o futuro de Israel.
O campo de extermínio de Auschwitz foi aberto em 1945. Israel nasceu, em 1948, apoiado no rochedo da legitimidade moral. 75 anos depois, a rocha esfarela-se aos poucos.
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