Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Dois coquetéis na mitologia dos western spaghettis

Nos filmes, Clint Eastwood abre a boca mais para beber tequila do que para falar

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Ouve-se a espora das botas, o ruído do vento e o bater seco de uma porta. O Sol mantém os olhos espremidos, mesmo sob a sombra do chapéu de aba reta. O poncho esconde os braços. Não se sabe de onde virá o tiro. Na boca, o cigarillo queima sem pressa.

Ouve-se um assobio. Não vem da cidade deserta, nem da poeira que se levanta. Vem de fora, mas é parte essencial da cena. Som de quem passeia calmamente no inferno, o assobio ganha a companhia de uma guitarra, sinos e um coro dantesco, sobre a percussão galopante.

O impacto de "Por um Punhado de Dólares", primeiro western spaghetti do cinema (1964), foi imenso. A impassividade de Clint Eastwood, em seu primeiro grande papel, ajudou a alavancar o filme de Sergio Leone, assim como a maior liberdade de tom —bem mais violento e cínico que os bangue-bangues americanos, ainda limitados pelo Código Hays, que zelava pela moral e os bons costumes.

Cena de "Por um Punhado de Dólares"
Cena de 'Por um Punhado de Dólares' - Divulgação

Mas nada disso teria o efeito que teve sem a trilha sonora de Ennio Morricone, talvez o maior compositor que o cinema já teve. Unindo a música erudita e a popular, usava timbres inusitados, fazia combinações originais de instrumentos e criava uma noção espacial com os arranjos e a melodia.

Assim, conseguiu compor trilhas que fossem, a um só tempo, parte orgânica do filme e música autônoma —em muitos casos sendo mais lembradas que as películas para as quais foram escritas.

Morricone havia sido colega de Leone na escola. Entendiam-se às maravilhas. Em entrevista, disse que os filmes que fizeram juntos são lentos e contém cenas longas porque o diretor queria aproveitar ao máximo a atmosfera da música.

Leone, que se inspirou nos samurais de "Yojimbo", de Kurosawa, para seu primeiro faroeste à italiana, via os caubóis como heróis de Homero. Queria dar uma dimensão mitológica aos personagens. Que mal falam. A música e o som dos tiros falam por eles.

Eastwood, ainda no ensino médio da atuação, costumava cortar suas falas do script. Na trilogia de Leone/Morricone, completada com "Por uns Dólares a mais "e "Três Homens em Conflito", abre a boca mais para beber tequila no gargalo ou em copos de shot.

Os western spaghettis costumam acontecer na fronteira difusa entre EUA e México. Quase sempre de baixo orçamento, com atores italianos usando pseudônimos americanizados, eram na verdade rodados num dos raros semidesertos europeus, o de Tabernas, na região espanhola da Andaluzia.

Elementos tão díspares inspiraram uma mistura chamada spaghetti western cocktail, feita justamente com os espíritos mexicanos tequila e mezcal, e o amaro italiano. Morricone ganhou também seu coquetel, muito parecido com esse. A diferença básica é o Campari no lugar do amaro Nonino.

O compositor de cerca de 500 trilhas sonoras faria 95 anos neste dia 10. Viveu até os 91, sempre ativo. Aos 86 ganhou o segundo Oscar, por "Os Oito Odiados", de Tarantino, um de seus maiores fãs. Dizia que a razão da longevidade eram os exercícios físicos e uma taça de vinho por dia.

No documentário sobre ele dirigido por Giuseppe Tornatore, com quem fez parceria em "Cinema Paradiso", vemos o maestro rolando no tapete de sua casa, dando voltas na sala lotada de quadros e instrumentos musicais. Parece um menino. Não pelos exercícios. O que o move, claramente, é a música.

Coquetel com dry gin, campari e martini rosso - stock.adobe.com

MORRICONE

45 ml de tequila añejo

45 ml de campari

Um lance de bitter de laranja

Uma colher de chá de mezcal com infusão de cacau

Mexa os ingredientes com gelo e coe para um copo old-fashioned com gelo.

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