Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Uma Justiça para a riqueza, outra para a pobreza

Preto Pobre Preso, nosso PPP criminal, é das políticas públicas fundadoras do país

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O Estado de direito fez a proposta imodesta de nos submeter ao "governo das leis, não dos homens". Prometeu aplicar regras sem personalismos e caprichos, seguir a máxima "casos iguais se decidem igualmente", rejeitar o particularismo do "cada caso é um caso".

A promessa é moderna, mas tem toda uma população de diabos morando nos detalhes. Um deles é que a diversidade social pede soluções diferentes para situações parecidas pela lente da regra abstrata, a lente que não vê cor, gênero, lugar social do indivíduo ou história. Não percebe vulnerabilidades que tornam o ideal da "Justiça cega" em Justiça burra e cruel. Demanda inteligência jurídica e atenção moral. Demanda bom operador do direito.

Estátua da Justiça diante do STF, em Brasília - Gervásio Baptista/STF

Reconhecer que pessoas vulneráveis merecem tratamento diferenciado, por exemplo, foi ajuste que demandou tempo, conflito e muita reivindicação. A vulnerabilidade especial de crianças, idosos, mulheres, negros, pessoas com deficiência, ou de consumidores diante da empresa e de trabalhadores diante do empregador, recebeu do sistema jurídico brasileiro proteções diversas, imperfeitas ou não. Tem muito ainda por fazer.

Mas o Estado de direito brasileiro falha mais dramaticamente na tarefa de lidar com a pobreza, em especial da população pobre e negra. Aqui, a exclusão diz respeito a expectativas vitais de comer, morar, dormir e não morrer. Quando muito, de existir socialmente.

Para isso, nosso sistema de Justiça tem instituições como a Defensoria Pública, que presta assistência gratuita e defende direitos coletivos (função também do Ministério Público); adota regras de acesso à Justiça, como a gratuidade do processo; e tem à disposição doutrinas sobre a particularidade jurídica da pobreza (como o princípio da insignificância, que manda não punir o faminto que furta salsicha).

Apesar dessa tentativa de atenuar a injustiça na entrada e na saída, o Estado brasileiro se supera mesmo nas formas de maltratar e distribuir violência ao miserável. Em vez de atenuar as desvantagens incomensuráveis do pobre, o estado censitário as magnifica.

Uma cartilha não escrita desse Estado sem lei ensina como tratar pobres e negros. Passa por abordagem policial nas ruas pela cor da pele; intervenções policiais com tiro livre em favelas; ingresso violento em domicílio sem mandado judicial; reconhecimento de suspeitos a partir de estereótipo; presunção de culpa, não de inocência; presunção de ausência de prejuízo na defesa, mesmo quando o suspeito mantido na prisão sofre múltiplas arbitrariedades estatais.

Passa também por teses espúrias como "estava num ponto de tráfico", que pode coincidir com rua do domicílio de pessoa pobre; exigência de endereço e expropriação de pertences de pessoas em situação de rua; execução sumária disfarçada de legítima defesa da polícia (entre outras formas de irresponsabilização do Estado e de agentes estatais por crimes).

Por aí reza a magistocracia autoritária, parcela dos agentes da Justiça que recusa os valores políticos da Constituição de 1988. Subletrada em direitos fundamentais, convive pacificamente com o abuso de poder e a violação da lei.

O STF tem a oportunidade de anular um ingrediente importante da política do Preto Pobre Preso, nosso PPP criminal. O tribunal julga a constitucionalidade da abordagem policial de pessoa suspeita por ser negra, sentada no meio-fio.

O Código de Processo Penal autoriza busca pessoal sem ordem judicial quando a polícia tem elementos objetivos para verificar "fundada suspeita" (artigo 244). Um poder concedido ao policial e sujeito a controle judicial.

Por "elementos objetivos" não se entende a cor da pele, mas o conjunto de características concretas que indiquem prática de crime. Tampouco, nos termos do auto de flagrante, "indivíduo de cor negra que estava em cena típica do tráfico de drogas". A polícia não pode revistar tua mochila porque não foi com a tua cara ou com tua cor.

Pessoas negras, além de serem mais encarceradas, condenadas e assassinadas pela polícia, são também, sem surpresa, mais presas em flagrante. Estudos demonstram que cidades como Belo Horizonte já chegaram a ter mais de 4 pessoas negras presas em flagrante para cada pessoa branca presa em flagrante. A desproporção é consistente em todo o país.

A cumplicidade magistocrática com a violência racial é informada por profunda ignorância de evidências empíricas e por preconceitos inconfessos. Ou por ignorância e preconceito nem tão inconfessos, como a fala de Lindôra Araújo, que disse sofrer racismo em Portugal, está aí para demonstrar.

Não tem como a Procuradoria-Geral da República piorar. Mas tem como o STF se afastar de sua desinteligência e perversidade.

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