Sofrência, neologismo da língua portuguesa —esse tesouro que nunca para de se enriquecer com novas palavras.
Consta que surgiu pela primeira vez em 1969, numa música dos Originais do Samba: “Só mesmo a palavra sofrência/ em dicionário não tem/ mistura de dor, paciência/ que é riso, que é canto também”. Salto no tempo e agora a sofrência ganhou um significado mais óbvio, sofrimento com carência. É muita tristeza em tão poucas sílabas.
Sofrência, gênero musical brasileiro, mistura de sertanejo com brega para descrever amores unilaterais, dor de cotovelo e de corno, pé na bunda, ciúme, decepção, desilusão. Nada que um tão ansiado quanto impossível rala e rola não pudesse resolver, o que nossos ouvidos ficam sabendo em maior ou menor quantidade de decibéis, dependendo do alcance vocal de quem interpreta.
Sofrência, a trilha sonora ideal para o Brasil de 2019. Se tudo o que a gente passou virasse música, seria a canção mais sem graça de todas. Ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer, diz o refrão de um sucesso da sofrência. Melhor incluir esses versos nos livros de história. Eles resumem bem a situação. E se quiser cantar a letra abaixo, a sugestão é gritar tanto quanto um cantor sertanejo.
Gritar muito. Alto mesmo. Vai que alguém nos escute.
Quando eu vi você, tão desajeitado/ Tão pouco à vontade, todo amarfanhado/ Deus dentro do peito, a prole ao lado/ Às vezes xingando, nas outras calado/ Brilhou uma luz no meu coração/ Eu logo entendi, é a salvação/ Acima de tudo, a minha nação/ O fim da balbúrdia e da corrupção
Por você briguei, rompi com o vizinho/ Bloqueei mulher, cachorro, passarinho/ Excluí cunhada, filho e padrinho/ Ao Show da Virada eu assisti sozinho/ Que sonho de país, coisa linda de se ver/ Você triunfar, a família vencer/ Toda putaria desaparecer
Ao meu três-oitão, a glória e o poder/ Verdade que o PIB vai ser acanhado/ Será raridade ver um aposentado/ Eu mesmo já fui terceirizado/ E os comunistas me chamam de gado
Agora inventaram esse lance de robô/ E não é que logo a Joice é o pivô?/ A inveja é a arma do pecador/ Eu sigo respondendo que Deus é amor/ A fé tudo move, mas às vezes embaça/ Você pra mim foi graça ou desgraça?/ Nessas horas, minha filha —só por pirraça/ Me abraça e diz assim: faz arminha que passa.
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