Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Minha colega de classe descobriu que tinha meia-irmã depois de acidente com guarda-sol

Elas chantagearam o pai, viraram sócias e querem comprar casa na praia para a aposentadoria

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Deborah Raphael

Professora do Instituto de Matemática e Estatística da USP, mora em São Paulo

Zíula era uma colega do ensino médio que se vestia como uma freira e nunca podia sair conosco pois seu pai não deixava. Eram os anos 1980 e nós, jovens, achávamos que estávamos mudando o mundo. Todos, menos Zíula. O pai, Aluiz, não contente de ter um nome estranho, colocou na filha outro nome estranho que era o seu, lido de trás para frente.

Zíula era inteligente e sensível e sempre trazia um olhar novo para nossas conversas. Tínhamos pena dela. Estava claro que o pai autoritário não a deixaria florescer. Ela não era conformada, mas não via uma saída.

Da mãe, Zíula não falava muito, só que tinha uma saúde frágil. Acontecia de Zíula faltar à aula para tomar conta dela.

No terceiro ano, o mais importante para todos nós que procurávamos entrar em uma boa faculdade, Zíula abandonou a escola em maio. Não soubemos mais dela, mas o rumor era que a família tinha se mudado para Portugal.

Os anos passaram, fomos para a faculdade e não soube mais de Zíula. Até que a encontrei no aeroporto, na espera para um voo entre Lisboa e Roma. Na verdade, ela que me encontrou, me reconheceu. Uma mulher elegante, com cabelo curtinho e espevitado, preto com mechas brancas ou vice-versa. Na sala de espera se aproximou de mim, disse quem era. Aí chamaram o voo e nos separamos.

Fiquei lembrando do pouco que sabia de Zíula e me sentindo envergonhada por não ter tentado ter notícias dela. Na época, parecia que precisava de ajuda. Agora, nem um pouco.

Zíula embarcou primeiro, na classe executiva, e me decidi a pedir um contato e tentar conversar com ela, mas não precisou. Antes mesmo que o avião decolasse, apareceu Zíula oferecendo seu lugar ao cara que estava ao meu lado, que topou na hora. As quatro horas do voo passaram em um minuto.

Ela estava indo para Roma fechar um negócio. “Lembra que meu pai tinha um comércio de materiais de construção em São Paulo?” Não, eu não lembrava. “Pois é, assumi o negócio quando tinha 21 anos e fomos aumentando, diversificando. Trabalho com importação e exportação entre o Brasil e a Europa. Gosto muito do meu trabalho e viajo bastante. Adoro viajar.”

Quando ela saiu da escola, foi mesmo morar em Portugal? O pai morreu? E a mãe? “Nossa, aquela época foi dura. Minha mãe teve câncer e meu pai decidiu que eu ficaria em casa cuidando dela. Ela ficou bem, mas foi um tratamento sofrido, ainda mais do que hoje em dia. Eu e ela ficamos em São Paulo mesmo. Meu pai foi um tempo para Portugal. Os negócios dele não estavam muito bem, e ele voltou para a terrinha para ver se a família ajudaria. Meus pais estão vivos e mais ou menos saudáveis. Velhinhos. Vivem em Portugal.”

Mas como Zíula conseguiu virar dona da sua vida?

Na época em que a mãe estava doente e o pai em Portugal, Zíula foi se inteirando melhor da situação familiar. Os negócios do pai iam mal, e o sócio que tomava conta aparecia uma vez por semana para ver sua mãe e com papéis para assinar. Ao contrário da mãe, Zíula lia os papéis e até os fotografava.

A imagem do pai de homem de negócios eficiente e todo o tempo viajando a trabalho foi ruindo, e ela percebeu que as coisas iam de mal a pior. Também percebeu que não tinha negócio algum que justificasse as constantes viagens de Aluiz. O pai voltou e concordou que Zíula fosse para o apartamento no Guarujá com a mãe para ajudar na recuperação.

Ia cedinho à praia e, um dia, seu guarda-sol voou direto sobre uma menina que passava, machucando sua perna. Assim conheceu Cíntia, que tinha mais ou menos sua idade e também um pai autoritário que não a deixava fazer nada. Conversa vai, conversa vem, Cintia contou que o pai trabalhava com materiais de construção e que tinha estado em Portugal no ano anterior.

Para encurtar, era o mesmo pai. Aluiz tinha duas famílias. E era igualmente moralista e autoritário com as duas filhas. Tudo isso foi deduzido em meia hora de conversa com uma desconhecida: sua meia-irmã.

As meninas se uniram. Ambas revoltadas, ambas reprimidas, ambas infelizes, queriam consertar as coisas, para elas e para as mães. Mas como? Foram descobrindo mais fatos. O avô, de quem o pai praticamente dependia financeiramente, sabia da história. Ambas conheciam o avô, ambas foram para Portugal.

Uma advogada lhes explicou que bigamia era crime, e a saída apareceu. O pai tinha se casado com as duas mulheres. Simplesmente chantagearam o pai, que na verdade já estava um pouco vulnerável pela instabilidade financeira. As meninas viraram sócias nos negócios, passaram a trabalhar e controlar o pai que, em quatro anos desistiu e passou a viver com a mesada que as filhas lhe davam.

Contaram a situação para suas respectivas mães com tato e carinho. O que elas queriam fazer? A mãe de Cintia quis se separar, e a mãe de Zíula quis ficar. Aliás, a mãe de Zíula ficou magoada com a filha, que a obrigou a encarar uma verdade que, desconfia a filha, ela já sabia mas fingia não saber.

Cintia se casou, se separou e teve um casal de filhos. Zíula nunca teve filhos e tem um relacionamento estável e aparentemente feliz com um professor inglês há mais de 20 anos. Cintia mora em São Paulo, e Zíula, em Lisboa, sempre trabalhando juntas. Viajam com frequência uma para a casa da outra e planejam comprar uma casa na praia para a aposentadoria das duas e do professor inglês.

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