Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Descrição de chapéu

Assegurar integridade de escarradeira que foi de dom João 6º não é moleza

Vigia do museu, Sérgio é um patrimônio humano que também precisa ser preservado

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Para quem já esteve na mira de fuzis, tentando conter assaltos a banco dignos de filme de ação, assegurar a integridade de uma escarradeira que pertenceu a dom João 6º é moleza. “Falando, parece fácil. Mas outro dia, um garotinho fugiu da visita escolar e tentou colar chiclete no nariz dum anjo barroco.”

Ilustração de uma cena em um museu, na qual várias pessoas circulam pelo espaço. Em destaque, está uma estátua de um homem em cima de um pedestal. Ele tem um bigode farto, veste boné, camisa polo, bermuda e um cinto de equipamentos. Esse homem está com o queixo levemente elevado e as mãos para trás do corpo. Ao lado da estátua, há um quadro grande de um lado e dois menores do outro.
Marcelo Martinez/Folhapress

Sérgio atua como vigilante patrimonial há mais de 30 anos. Aliás, “Sérgio” é nome inventado, pois ele prefere ficar incógnito. “Quem tem que aparecer são os objetos de valor. Meu trabalho é ser invisível.”
É? Pois eu o avistei bem antes da pandemia. O museu estava aberto, mas já vivia vazio. Esse clássico das instituições que lutam para se manter de pé apesar do descaso federal.

De longe, ele parecia temer que eu tirasse uma marreta da bolsa. Na real, eu lutava contra um mapa, perdida, tentando achar a setinha do “você está aqui”. Até que o questionei sobre a pena com que a Lei Áurea foi assinada. “Ih, não: fica lá no Museu de Petrópolis.”

Na hora, me senti tão desinformada que foi como se o garoto do chiclete e outros alunos da visita escolar me tacassem uma chuva de bolinhas de papel. O vigia notou e sorriu. “A senhorita já passou pelas espadas imperiais? Dizem que uma é assombrada: só cortava cabeças.” Pronto: amei Sérgio.

Para além das agências de banco, ele tem vários museus no currículo. “Faltou o Nacional. Quando penso no incêndio, me dá tristeza.” Seu prazer é ouvir as visitas guiadas.

“Isso me aprimora.” Indaguei se vigilantes escolhem onde trabalhar. “Não, daqui posso ser transferido para qualquer lugar. Um estacionamento. Ninguém sabe da vida.”

Puxei o celular para ver as horas: o museu ia fechar. “Muita gente olha mais para isso aí do que para os quadros, sabe?” Pedi, então, que ele me indicasse seu favorito. “Ah, o do navio em chamas. Tem a lua refletida no mar. É lindo. Se quiser ver, dá tempo.” Claro que eu quis.

Andei rápido.

Fui conferir a obra com meus próprios olhos, mas acho que a enxerguei também com os olhos do Sérgio: era um deslumbre. Ocupava a parede quase toda. Me emocionei.

Soube que meu amigo continua no museu, agora acompanhando reformas para quando tudo reabrir. Fiquei feliz: um patrimônio humano desses também precisa ser preservado. Zelando pela memória, não por carros num estacionamento. Então siga vigilante, Sérgio. Por favor, siga.

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