Semana passada a Garota de Ipanema, imortalizada por Tom e Vinícius, completou 80 anos. Se fosse socialmente aceitável, eu até diria que ela não parece a idade que tem. Belíssima e radiante, Helô Pinheiro revelou na ocasião que se arrepende de não ter tido uma vida mais animada na juventude. "Gostaria de ter aproveitado mais a vida, ter experimentado outros homens antes de me casar, ter sido um pouco Leila Diniz", declarou.
Fiquei com algumas perguntas na cabeça. Será que a liberdade sexual de Leila Diniz não teve um significado maior do que "experimentar" vários homens? Será que existe ser "um pouco" Leila Diniz? Será que dá para ser Leila Diniz, sem nascer Leila Diniz?
Inesquecível e única, Leila Diniz virou um adjetivo polissêmico: era muitas mulheres, sendo muito mulher. Teve a "indecência" de ter atitude. Falou palavrões, exibiu uma barriga grávida quando todas as outras mulheres a escondiam atrás de batas e lacinhos, se expressou com sua voz potente e seu corpo, um corpo naturalmente lindo. Falava que não morria de amores, preferia viver deles. Não foi uma feminista de hashtag, não levantou bandeiras, não demonizou os homens, não organizou movimentos, não queimou sutiãs: ela foi a própria revolução.
Helô Pinheiro verbalizou um desejo que mora no íntimo de todas nós, revestido por nossas caretices e temores: ser mais Leila Diniz –ou, melhor ainda, já ter sido Leila Diniz, no verbo passado. É fácil ser Leila Diniz depois de ela já ter inaugurado um novo tipo de existência, ter aberto as portas da emancipação feminina, rompido barreiras, enfrentado a época de repressão, censura, vigilância, tortura, prisões ilegais. É fácil ser só "um pouco" Leila Diniz, sem a parte de se arriscar, de escandalizar, de ter que enfrentar o ódio do conservadorismo, de abrir mão do solo seguro, de dar a cara para bater, de ser difamada. Assim é fácil ser Leila Diniz, mas isso não é ser Leila Diniz.
Fernanda Young foi Leila Diniz, com a coragem que tinha de ser o que era, de falar coisas que a gente não consegue verbalizar, de não ter medo de se contradizer. Intuitiva, ela conseguia enxergar e distinguir o que era verdade e o que era convenção. Questionava o conformismo com atitudes libertárias, era luz, que incomodava quem queria continuar a ser míope.
Rita Lee foi tão Leila Diniz, que nem precisava se declarar feminista. Na música "Todas as Mulheres do Mundo", um hino às mulheres, não por acaso as duas garotas de Ipanema —a comportada e a subversiva— são citadas uma seguida da outra. "Toda mulher quer ser amada, toda mulher quer ser feliz, toda mulher se faz de coitada, toda mulher é meio Leila Diniz; Garotas de Ipanema, minas de Minas, loiras, morenas, messalinas, santas sinistras, ministras malvadas, Imeldas, Evitas, Beneditas estupradas".
Mulheres são plurais, mas escolhem ser o que conseguem ser, o que têm a coragem de ser.
Leila Diniz teve uma passagem breve por aqui, viveu só 27 anos, nos deixou há 51 anos, mas continua presente, viva, porque ainda precisamos dela.
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