Em 1814, refletindo a revolta da população madrilenha contra as forças francesas de ocupação, o pintor espanhol Francisco Goya completou uma de suas obras de significado humano e histórico mais profundo, o quadro "Três de Maio de 1808 em Madri".
A tela é revolucionária e, sem dúvida, a mais poderosa obra de arte produzida na Espanha durante o século 19. Foi, no entanto, quase incompreensível para quem a viu na época, pela simples razão de rejeitar todas as convenções usuais da pintura histórica barroca e neoclássica.
Nela, não há heróis, apenas vítimas; não há feitos corajosos dos quais podemos nos orgulhar, apenas a execução sangrenta de inocentes; e não há nenhuma causa nobre sendo comemorada, apenas revolta, repressão e o sentimento de desespero dos homens que imploram por suas vidas prestes a serem fuzilados.
A sociedade se manteve embriagada pelas transformações sociais e conquistas políticas, pela expansão econômica e por inovações científicas, culturais e tecnológicas possíveis apenas após o fim das guerras napoleônicas. Foi necessário mais de um século —com os efeitos de duas Guerras Mundiais, a morte de centenas de milhões de pessoas, 225 mil civis mortos em segundos em Hiroshima e Nagasaki— para que o simbolismo de Goya pudesse ser entendido e reinterpretado.
Em 1958, sentindo-se sufocado pela ameaça de uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética, o artista gráfico e designer britânico Gerald Holtom se inspirou no quadro para criar o símbolo que se popularizou no mundo como "paz e amor", para simbolizar a Campanha pelo Desarmamento Nuclear. "Eu estava em desespero. Desespero profundo. Desenhei-me: a representação de um indivíduo desesperado, com as palmas das mãos estendidas para fora e para baixo, ao modo do camponês de Goya diante do pelotão de fuzilamento. Formalizei o desenho em uma linha e coloquei um círculo em volta."
Naquele ano, o Relógio do Juízo Final —uma metáfora criada pelos cientistas que trabalharam no desenvolvimento das primeiras armas nucleares, nos alertando de quão perto a humanidade está de se autodestruir— ainda nos dava sete minutos para repensarmos nossas ações.
Desde então a metáfora do relógio continua sendo usada pelo Boletim dos Cientistas Atômicos, e 77 anos após Hiroshima e Nagasaki, 33 anos depois da queda do muro de Berlim e da reunificação da Alemanha, só 30 anos após o colapso da União Soviética, estamos mais perto do que nunca desse terrível alerta. Nos sobram apenas cem segundos.
Deixamos de temer o desastre nuclear e nos acostumamos a temer invasões alienígenas, o impacto de meteoros, terroristas barbudos e o apocalipse ambiental. Não é à toa que os principais especialistas sobre a ameaça de um conflito nuclear tenham diminuído tão drasticamente o tempo que ainda temos para refletir sobre nossas ações. Para eles, a ameaça mais devastadora é a de uma guerra nuclear iniciada não intencionalmente, mas por acidente ou erro de cálculo.
A crise da Ucrânia é o ambiente perfeito para que erros como esse aconteçam. Ela nos aproxima de uma guerra sem heróis, apenas vítimas; uma guerra sem feitos corajosos dos quais poderemos nos orgulhar, apenas a execução sangrenta de inocentes; sem nenhuma causa nobre a ser comemorada, apenas revolta, repressão e o sentimento de desespero dos homens que imploram por suas vidas prestes a serem fuzilados.
Estamos repetindo o passado. Estamos embriagados pelas mudanças e conquistas na política, na economia, em ciência, cultura e tecnologia possíveis apenas depois do fim das duas Guerras Mundiais e da Guerra Fria. Nossa sociedade não consegue entender o desespero de Holtom e muito menos o simbolismo de Goya.
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