Alexandra Forbes

Jornalista, escreve sobre gastronomia e vinhos há mais de 20 anos. É cofundadora do projeto social Refettorio Gastromotiva e autora de livros de receitas.

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Enquanto uns veem o caos dentro de um iate, outros estão com canoas furadas

Em Bordeaux, com mais vinícolas do que qualquer outra região no mundo, há donos de château quebrados

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Segunda-feira, 15 de junho. Às 9h da manhã o Château Cheval Blanc, que produz um dos mais caros e prestigiosos vinhos do mundo, anunciou seu preço por garrafa para a safra de 2019: € 315 (equivalente a R$ 1.929) preço exclusivo para atacadistas de Bordeaux–os chamados "négociants".

Em três horas, 20 mil garrafas foram vendidas. No dia seguinte, esgotou-se o lote inteiro de 40 mil garrafas. Simultaneamente, os négociants já o repassavam para importadoras e butiques de vinho do mundo todo a € 370 (R$ 2.266).

Sei desses detalhes porque meu marido trabalha lá, mas algo parecido aconteceu com vários outros Châteaux de prestígio da região francesa, como Haut-Brion, Margaux e Mouton Rotschild. Todo ano eles lançam os chamados "primeurs", que são como uma bolsa de futuros vinhos.

Durante algumas semanas um após o outro anuncia seu preço aos négociants e as vendas vão sendo feitas em ritmo frenético, sendo que o vinho propriamente dito só será engarrafado e entregue aos compradores em 2021. A velocidade de ação e a voracidade dos négociants são como um termômetro que indica a saúde do setor.

A médica aqui afirma que os grandes châteaux de Bordeaux vão muito bem, obrigada. Muitos venderam tudo o que tinham para vender em tempo recorde. Por causa da pandemia e do momento sombrio pelo qual o mundo está passando, eles baixaram seus preços por volta de 20% em relação ao ano passado –mas mesmo assim, estamos falando de garrafas que custam centenas de euros cada!

No entanto, o tiozinho que, até março, vendia seu vinho tinto a € 3 (R$ 18,3) para redes de supermercados e o restante a granel, a € 1(R$ 6,12) o litro, desespera-se. Ninguém se interessa pela safra de 2019 do coitado.

As vendas –não importa de qual safra– secaram. Em Bordeaux, com mais vinícolas do que qualquer outra região no mundo e mais de cem mil hectares de vinhas plantadas, há centenas de tiozinhos assim, donos de châteaux quebrados.

Château quer dizer castelo em francês, mas as casinhas de campo da maioria desses tiozinhos não tem luxo nenhum. Château, no caso deles, é só o termo oficial que designa uma vinícola. Qualquer um que faça vinho seguindo as rígidas regras locais pode chamar sua roça de château.

Restaurante Celler de Can Roca
Restaurante Celler de Can Roca - Alexandra Forbes

E esse vinho barato raramente esteve tão barato como agora: a situação é dramática. O governo, para ajudar, montou um esquema em que vinhateiros necessitados podem vender –a € 0, 60 (R$ 3,6) o litro–seu vinho a destilarias para ser transformado em… álcool em gel!

O mundo está cheio de ricos que continuam ricos apesar da pandemia e que seguem consumindo luxo com o mesmo apetite: a campanha dos primeurs de Bordeaux comprova isso.

Outros exemplos abundam. O famoso e premiadíssimo restaurante El Celler de Can Roca, na Espanha –onde um jantar para dois pode facilmente passar de € 400 (R$ 2.449)– quando reabriu as reservas foi inundado de pedidos.

Dia 1º de maio soltaram as primeiras mesas e elas esgotaram-se em… uma hora ! Um mês mais tarde soltaram outras e –pimba !– esgotaram-se a jato também. Enquanto isso, milhares de bares e restaurantes não só na Espanha, como no mundo inteiro, estão prestes a falir.

Justo, não é. Mas quem é que disse que o mundo é justo? Eu não caio nesse blablablá que corre nas redes sociais dizendo que o momento é de solidariedade porque estamos todos no mesmo barco.

Mesmo barco uma ova! Os Châteaux Margaux e Celler de Can Rocas do mundo, objetos de desejo de gente rica, estão muito bem abrigados na Arca de Noé deles, que é na verdade, um iate de três andares com heliponto.

Levaram uns arranhões mas logo voarão em velocidade de cruzeiro de novo. Já os Zés e as Chicas que pegaram dinheiro emprestado do banco para abrir o negócio dos seus sonhos que nem têm mais como pagar contas e empregados estão numa canoa furada.

Quando aponto o dedo para verdades doloridas levo paulada. Falta-me empatia, dizem uns equivocados. Não falta nada!

Co-proprietário e sommelier do restaurante Celler de Can Roca, Josep Roca
Co-proprietário e sommelier do restaurante Celler de Can Roca, Josep Roca - Alexandra Forbes

Sofro todos os dias imaginando o calvário que tem sido esses últimos meses para donos de pequenos negócios, especialmente no Brasil. O que me falta é alento quando vejo que o Brasil é uma tormenta e o mar está coberto de canoas furadas, umas já afundadas, náufragos ao léu. Nosso governo é como uma turbina submarina (e portanto cega e acéfala) ligada no máximo que só faz aumentar a tormenta. E salvem-se quem puder.

A principal lição que deve-se tirar desta crise é: seja bom gestor ou morra. Isso vale para vinícolas, restaurantes e bares, pequenos, grandes, todos!

"Quem entrou nesta crise sem dívidas e com uma reserva em caixa vai sobreviver, quem tem um negócio pequeno e enxuto também tem boas chances", disse o catalão Ferran Adrià, mais influente chef do mundo, a mim.

"A palavra que mais escuto no setor é 'sobreviver'. Mesmo eu que não tenho mais restaurantes sofro pelos meus amigos em dificuldade. Mas todos tem que se olhar no espelho e perguntar: 'como estou de finanças?' Por mais duro que seja. 'Quanto dinheiro tenho e quanto devo?' Continha simples, de avó."

Muitos já fizeram essa conta num papel e sacaram que perderam no jogo. Faliram. Terão que fechar.

Aos sobreviventes, eu digo: preparem-se para a próxima porrada. Façam um plano de negócios. Aprendam tudo o que puderem sobre gestão. Guardem um "dindim" para a próxima época de vacas magras, se e quando possível.

Adrià prevê que em um ano e meio 40% dos restaurantes gastronômicos estarão fechados. Dos casuais, ninguém sabe –mas provavelmente a devastação será maior no Brasil do que no resto do mundo, pela atual conjuntura, agravada pela crise política e a má gestão no combate à pandemia.

Só mesmo o setor do vinho é que anda relativamente bem, para as marcas de sucesso, consequência de cada vez mais gente estar comprando garrafas pela internet para afogar as mágoas em casa.

A tormenta ainda vai longe, em suma. Se aprendermos, com ela, a sermos mais formigas do que cigarras, ao menos terá servido para alguma coisa.

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