Descrição de chapéu pantanal

Companheirismo entre onças-pintadas é raro, mas duradouro

Estudo mostra que felinos não são tão solitários como se pensava e formam alianças que se estendem por anos

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São Carlos (SP)

A fama de caçadora solitária e antissocial da onça-pintada (Panthera onca) precisa ser revisada, indica um estudo feito no Pantanal e na Venezuela. O monitoramento de longo prazo dos machos da espécie indica que, na verdade, eles são capazes de forjar alianças entre si, dormindo e se alimentando juntos, enfrentando adversários e talvez até colaborando para monopolizar juntos as fêmeas de determinada região.

As observações sugerem que há mais em comum entre as onças e os leões, mais famosos felinos sociais, do que se imaginava até agora. Haveria ainda alguns paralelos entre o superpredador das Américas e os guepardos, velocíssimos felinos africanos que também registram colaborações entre machos adultos.

Dupla de onças-pintadas repousa lado a lado na Fazenda San Francisco, em Mato Grosso do Sul - Carolina Coelho/Reprodução Behavioral Ecology and Sociobiology

A grande diferença é que, por enquanto, as parcerias entre os machos de onça-pintada só foram registradas no caso de duplas, enquanto o processo envolve mais indivíduos no caso de leões e guepardos. Até onde se sabe, as outras espécies de grandes felinos, como os tigres, leopardos e suçuaranas, têm uma estrutura social e comportamento mais solitários.

Os resultados acabam de ser publicados na revista científica Behavioral Ecology and Sociobiology por uma equipe internacional de cientistas, que inclui diversos brasileiros e também especialistas da Polônia, dos EUA, do México e da Venezuela.

Para identificar as alianças de longo prazo das duplas de machos, o grupo se baseou em informações de armadilhas fotográficas (que obtêm imagens automaticamente quando o animal chega perto delas), monitoramento dos indivíduos por colares com GPS e rádio, avaliações genéticas (em geral, por meio das fezes das onças) e avistamentos em campo.

Os dados foram coletados no Pantanal brasileiro e na região venezuelana dos Llanos (pronuncia-se "Djanos"). Essas áreas possuem populações relativamente abundantes de onças-pintadas, graças à riqueza de recursos para os animais (com uma alta densidade de presas naturais e introduzidas) e também são ambientes parecidos entre si, com inundações sazonais e mosaicos de vegetação relativamente aberta e matas ciliares.

Isso facilita a coordenação entre indivíduos da coalizão e o monitoramento por parte dos pesquisadores. Além disso, acredita-se que a colaboração entre grandes felinos adultos seja mais comum nesse tipo de ambiente aberto, levando em conta que ela ocorre nas savanas africanas no caso de leões e guepardos.

A primeira constatação do estudo é que as alianças entre dois machos adultos são bastante raras. De um total de mais de 7.000 registros de onças-pintadas do sexo masculino no estudo, apenas 70 são exemplos de cooperação entre eles (o conjunto inclui também 18 casos de agressão e nove de "tolerância", ou seja, nos quais os machos não se agridem, mas também não cooperam).

No caso em que as duplas se formam, no entanto, o companheirismo pode durar vários anos. Nos Llanos da Venezuela, por exemplo, dois machos foram flagrados juntos 40 vezes, de 2013 a 2018.

Costumavam viajar pelo território em dupla e também marcá-lo (para demonstrar sua posse dele diante de outros machos) em conjunto. Em algumas ocasiões, um deles acasalava com uma fêmea enquanto o outro ficava por perto. Ambos expandiram seus domínios expulsando outros machos ao longo do tempo.

Já no norte do Pantanal, uma dessas parcerias foi registrada entre 2015 e 2018. Além de viajar e marcar o território juntos, eles costumavam cheirar a cara um do outro e foram vistos compartilhando dois cadáveres de gado e expulsando juntos um jovem macho invasor. Um dado interessante é que os pesquisadores não chegaram a identificar, por meio de análises genéticas, algum parentesco entre os aliados —em outras espécies, machos adultos que são irmãos, por exemplo, podem acabar formando coalizões.

Diferentemente do que acontece com os leões, as duplas de aliados não caçam juntas e não parecem formar colaborações com as fêmeas. Há indícios de que as parcerias tendem a se formar em locais onde há abundância de fêmeas, cada uma delas com territórios pequenos e vizinhos, o que indicaria que os machos estão se aliando para garantir o acesso às parceiras e excluir outros machos da competição por elas.

Um detalhe intrigante é que as onças-pintadas de hoje, mesmo as que habitam os ambientes mais ricos em recursos, como o Pantanal, têm à sua disposição relativamente poucas presas de grande porte —mas essa é uma situação relativamente recente na história evolutiva delas.

No fim da Era do Gelo, há cerca de 10 mil anos, a América do Sul estava repleta de herbívoros de grande porte, como cavalos, preguiças e tatus gigantes, espécies de lhamas que povoavam boa parte do Brasil e "supercapivaras". Seria algo muito mais parecido com a África atual, onde os leões caçam em bando.

"Pode ser que, nessa época, as onças-pintadas fossem maiores e formassem coalizões para capturar esses grandes herbívoros. Também havia outros grandes predadores para competir com elas, como ursos e dentes-de-sabre", disse à Folha o pesquisador venezuelano Rafael Hoogesteijn, um dos coautores do novo estudo, que trabalha na ONG conservacionista Panthera.

"Com a extinção desses grandes herbívoros da savana, as onças diminuíram de tamanho e se tornaram mais especializadas na captura de grandes répteis tropicais, como sucuris, jacarés e tartarugas, o que explica o fato de terem a mordida mais forte de todos os grandes felinos", explica ele.

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