Em 4 de julho de 2012, uma apresentação realizada na sede do Cern (Centro Europeu de Física de Partículas), em Genebra, Suíça, trouxe a descoberta que viria a coroar meio século de desenvolvimento do chamado Modelo Padrão: o bóson de Higgs.
E desde então muitos, nos círculos acadêmicos e fora deles, vêm se perguntando —o que vem a seguir?
Para Sérgio Novaes, físico da Unesp, esse é o foco errado. "A gente não faz experimento para saber o que vai dar, a gente sempre faz o experimento para saber se vai dar alguma coisa", diz o pesquisador, enfatizando a natureza investigativa da ciência.
Novaes é possivelmente a principal referência brasileira para falar sobre o bóson de Higgs e sua importância histórica. Não só fez parte da imensa colaboração internacional ligada ao LHC (Large Hadron Collider), grande acelerador do Cern que fez a descoberta, assinando o artigo científico que a apresentou ao lado de centenas de colegas, como foi o primeiro no Brasil a escrever um artigo sobre o bóson, quando ainda estava no mestrado, explorando o mecanismo que viria a revelá-lo quatro décadas depois.
Proposto originalmente em 1964 por Peter Higgs e outros cinco cientistas, distribuídos entre três equipes distintas, o bóson de Higgs (e seu campo correspondente) se mostraria essencial para explicar como as demais partículas elementares ganham sua massa.
A proposta se revelaria fundamental para o desenvolvimento do Modelo Padrão, que hoje basicamente resume tudo que se sabe sobre a matéria e três das forças fundamentais conhecidas na natureza (a única força que ele não contempla, dentre as conhecidas, é a gravidade, província da teoria da relatividade geral).
Ironicamente, foi também a última peça do Modelo Padrão a ser confirmada de forma experimental —48 anos se passaram entre a primeira predição de sua existência e sua detecção no LHC. Mas, considerando o sucesso enorme que o resto do Modelo Padrão teve, predizendo novas partículas que seriam então encontradas em experimentos, uma leitura comum é a de que a "descoberta" foi meramente uma confirmação do que já se sabia. Ledo engano, que Novaes trabalha para desfazer neste aniversário de dez anos. "Ninguém gasta bilhões de euros em um negócio que você já sabe."
Na Unesp, para celebrar a ocasião, ele apresenta uma palestra com o título "A história não contada", e o objetivo é enfatizar o tamanho do sucesso na detecção do bóson de Higgs, lembrando que, durante muito tempo, ao contrário de ser algo como "favas contadas", a proposição de sua existência foi tida por boa parte da comunidade de físicos como heresia ou maluquice. "Houve uma resistência enorme no começo, um embate forte na comunidade, negando aquilo e, mesmo entre quem não negasse, ninguém sabia para que servia."
Agora, com o Higgs descoberto, o LHC segue em operação, explorando novas possibilidades. Diante de mistérios não contemplados pelo Modelo Padrão, como a matéria escura e a energia escura, os físicos tateiam em busca de pistas de para onde prosseguir com suas pesquisas. E há esperança de que os experimentos tragam respostas.
Mas, mesmo que nada de novo seja descoberto, Novaes destaca a importância do trabalho. "Nossa macroagenda é tentar ir o mais profundo possível nos constituintes da matéria para entendê-los da melhor maneira possível. Isso é uma aventura que por si só justifica continuar a busca", diz. E enfatiza que tanto faz que país construa o próximo grande acelerador de partículas; a despeito das disputas por prestígio e hegemonia, quem ganhará é a ciência.
Sua palestra para marcar o décimo aniversário da detecção do bóson de Higgs, na Unesp, leva o título de "A história não contada". A contada é a das previsões, nos anos 1960 e 1970, e a da descoberta científica, anunciada pelo Cern em 2012, que rendeu o Prêmio Nobel. Qual é a não contada? A ideia é contar como é fazer ciência na vida real. O fato de as propostas terem sido profundamente desacreditadas no começo.
O Peter Higgs conta a história de que, em 1966, dois anos depois de ter proposto a ideia, foi dar um seminário em Harvard. E o Sidney Coleman, que era um cara super gozador, tive a oportunidade de dividir sala com ele, depois contou que "estava ansioso para fazer em pedaços esse idiota".
Higgs conseguiu evitar que fosse chamado de maluco, mas não conseguiu mostrar que seu trabalho, então bem controverso por contrariar "dogmas" da física, fosse útil para alguma coisa. Ou seja, houve uma resistência enorme no começo, um embate forte na comunidade, negando aquilo e, mesmo entre quem não negasse, ninguém sabia para que servia.
Daí em 1967 o [Steven] Weinberg faz o estudo dele [que conduziria à criação do Modelo Padrão da Física de Partículas], duas páginas e meia, 18.500 citações e um Prêmio Nobel. É absolutamente fantástico. Mas ele fala na hora em que propõe o modelo: "Claro que nosso modelo tem muitos parâmetros arbitrários para se fazer qualquer predição que pudesse ser levada a sério".
Desde a proposta do modelo até a descoberta do próprio Higgs, pesquisadores dedicaram muito tempo tentando encontrar uma alternativa viável.
E como começou a busca pelo bóson de Higgs efetivamente? Em 1975, anos depois da proposta original do Higgs, John Ellis e colegas fazem o primeiro estudo fenomenológico.
É um estudo de 45 páginas em que eles terminam dizendo: "Olha, nós pedimos desculpas ao pessoal experimental, a gente não tem a mínima ideia de qual seja a massa do bóson e também não sabe exatamente qual é o acoplamento dele às outras partículas. São coisas que o modelo não prevê. Por essas razões, não queremos encorajar grandes buscas experimentais pelo bóson de Higgs, mas sentimos que pessoas realizando experimentos vulneráveis ao bóson de Higgs deveriam saber como ele pode aparecer".
E aí aconteceu o seguinte: o sucesso do modelo foi se tornando estrondoso. Novas partículas foram sendo descobertas, os bósons W e Z, e estava tudo se encaixando de uma maneira absurdamente fantástica, a menos do bóson de Higgs. Como pode uma situação como essa? É objeto que tem que ser perseguido.
O duro era não saber em que nível de energia, que faixa de massas, procurar. Por que aí os experimentais ficam no escuro. Digo o seguinte: a gente não faz experimento para saber o que vai dar, a gente sempre faz o experimento para saber se vai dar alguma coisa. A gente tinha a pergunta, onde está o bóson de Higgs. E o LEP (acelerador europeu anterior ao LHC), se tivesse um pouco mais de energia, o teria encontrado. Inclusive havia alguns eventos meio suspeitos. E virou uma briga com o diretor do Cern, se mantinha o LEP ligado ou desligava para instalar o LHC. Eles se situam exatamente no mesmo túnel físico. Então tinha de desmontar o LEP para construir o LHC. O LEP, o limite dele chegou a 115 GeV (gigaelétron volts). E o bóson de Higgs apareceu com 125, 126 GeV.
E aí entramos numa fase, já falando dos últimos dez anos, que é sobre o que vem a seguir. Seu colega de Unesp, Rogério Rosenfeld, costuma citar uma síndrome chamada PHD, "Post-Higgs Depression", ou depressão pós Higgs. Porque agora o Modelo Padrão está fechado, isso está resolvido, mas há sinais de que exista física além do Modelo Padrão. Matéria escura, energia escura, uma série de problemas ainda a serem atacados, e os experimentalistas se veem em situação talvez similar à dos anos 1960, 1970, em que você tinha modelos de todo tipo, mas não tinha amparo experimental suficiente para escolher um favorito. É um paralelo válido entre o que estava acontecendo então e agora? Mais ou menos. Deixa eu fazer um depoimento pessoal aqui. Vou pegar o mesmo PHD e dizer que eu sofri de "Pre-Higgs Depression", depressão pré-Higgs. Porque fiz uma mudança de carreira bastante forte.
Comecei minha carreira publicando no mestrado um artigo que eu considero, até que me provem o contrário, o primeiro sobre o Higgs publicado no Brasil, e fiquei muito feliz de ter publicado o artigo sobre o exato mecanismo que veio a produzi-lo 40 anos depois.
Segui carreira como teórico e chegou uma hora em que falei, escuta, não é daí que vai sair a solução de nada, porque a imaginação do cientista é uma coisa muito rica e a gente está tentando explorar coisas cada vez mais malucas, cada vez mais numa direção que a gente não sabe para onde está indo, e quem que pode responder isso? Só pode ser o experimento. E fui me tornar um experimental já no meio da carreira, depois de 20 anos.
Tendo dito isso, acho que hoje está mais forte [que no passado], porque lá a gente fazia a física do possível. A proposta do Modelo Padrão hoje é muito forte, está difícil encontrar uma brecha. Mas estamos trabalhando em matéria escura. Nossa linha de pesquisa em física exótica tem sido a busca por matéria escura no LHC.
E acha que vai encontrar? Não sei ao certo, não vou colocar os meus sentimentos aqui porque são...
Por favor, coloque-os. Pelo seu tom, dá a impressão de que acha que o Modelo Padrão está tão redondinho que, do seu ponto de vista, é mais confortável questionar as evidências astrofísicas da matéria escura. É mais ou menos por aí? É claro que todo mundo vai defender o seu, que as evidências são sólidas e que não tem outro jeito. É assim mesmo. Tudo bem. Agora, pode não ser uma partícula, entende? Não é necessariamente uma partícula. Não sei o que pode ser. Se eu soubesse, eu estaria aqui escrevendo o estudo para comprar a passagem para Estocolmo. Pode ser uma coisa completamente nova. Mas é nossa obrigação moral e científica insistir na hipótese de que, se for uma partícula, provavelmente ela deveria se manifestar no tipo de colisões que fazemos.
Qual é o tamanho do sucesso na descoberta do bóson de Higgs, passados dez anos? Enorme vitória. Hoje em dia, tem uma atitude meio que considerando essa grande vitória como coisa do passado. "Ah, isso aí a gente já sabia que tinha." Isso que também não pode, viu? É por isso que o título da minha palestra é aquele. Não foi assim que aconteceu. Ninguém gasta bilhões de euros em um negócio que você já sabe.
Para terminar, queria perguntar sobre o futuro da física de partículas. Os chineses vêm falando de construir um acelerador mais potente que o LHC. Americanos e europeus ainda não deram esse passo, embora ideias não faltem. A pergunta dupla: precisamos de um acelerador mais potente e, se ele for construído, é provável que seja na China? É uma pergunta complexa, mas não quero dar uma resposta fácil para ela. Por que se constroem mais aceleradores? Por duas razões.
Primeiro, se houver partículas mais pesadas, é preciso mais energia. E, para penetrar mais numa distância cada vez menor da matéria, é preciso mais energia. Então, a nossa macroagenda é tentar ir o mais profundo possível nos constituintes da matéria para entendê-los da melhor maneira possível. Isso é uma aventura que por si só justifica continuar a busca. Não precisa fazer uma agenda feita para te vender a matéria escura, a energia escura. É aquela famosa frase do Wilson, diretor do Fermilab, questionado por congressistas americanos sobre os gastos do laboratório. Perguntaram a ele se o investimento ajudaria em alguma coisa a defesa do país. Ele respondeu que não, mas faria com que o país valesse a pena ser defendido.
Quanto ao projeto chinês, ele ainda não tem proposta consolidada, e a guerra deles é de hegemonia, com os EUA. E eles sabem, ao contrário de nós, que a ciência tem um papel extremamente importante. Se a gente conseguir ultrapassar as dificuldades econômicas, os EUA têm propostas para fazer aceleradores, a Europa tem, a China tem, e é muito bom que todo mundo tenha e que ganhe a melhor opção.
Raio-X
Sérgio Ferraz Novaes, 66
Professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em São Paulo, é membro da colaboração Compact Muon Solenoid (CMS), um dos quatro experimentos instalados no LHC (Large Hadron Collider), acelerador do Cern (centro europeu para física de partículas) responsável pela descoberta do bóson de Higgs. É pesquisador principal do Centro de Pesquisa e Análise de São Paulo (SPRACE), e sua equipe implantou o GridUnesp, o primeiro Campus Grid da América Latina. Foi representante brasileiro na Comissão de Partículas e Campos da União Internacional de Física Pura e Aplicada e é cofundador do Advanced Institute for Artificial Intelligence (AI2).
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