Cientistas negros cobram ações contra racismo e divergem sobre protestos

Pesquisadores brasileiros acumulam episódios de preconceito tanto no laboratório como ao dar aulas

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São Paulo

Enquanto nos EUA e em países europeus cientistas fazem greve contra o racismo na academia, no Brasil os pesquisadores ainda buscam reconhecer nos seus pares a mesma cor de pele.

Eles cobram medidas práticas de inclusão das instituições de ensino e pesquisa e divergem sobre os protestos de rua, que geram aglomeração antes de o país ver arrefecer os números da pandemia.

Na quarta-feira (11), profissionais das Stem (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática) usaram o dia para refletir sobre a discriminação em suas áreas e modos de freá-la.
Revistas científicas de alto impacto, como a Nature e Science, interromperam suas atividades em apoio à causa.

Por aqui, as ruas fizeram eco à revolta americana, mas a academia não.

“Houve pedido para que os físicos brasileiros fizessem o mesmo, mas a Sociedade Brasileira de Física queria que só os negros escrevessem o documento. Como fazer greve contra o racismo em uma universidade praticamente só de brancos, sem que eles queiram participar?”, questiona Sônia Guimarães, a primeira mulher negra brasileira doutora em física e primeira mulher negra brasileira a lecionar no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).

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Sônia Guimarães, a primeira mulher negra brasileira doutora em física e primeira a lecionar no ITA, em cerimônia de premiação - Bruno Poletti-16.mai.16/Folhapress,

Dos 200 professores do instituto, só 4 são professoras negras. Não há nenhum homem negro, segundo Guimarães. Ela, que é PhD pela Universidade de Manchester e especialista na área de semicondutores, segue somando episódios de preconceito no trabalho.

“Todo santo dia [sinto racismo]. Só porque eu dei 37 palestras no ano passado criaram uma regra de que professor só pode dar cinco palestras por ano. Já tentaram me proibir de dizer que eu sou negra porque isso estava ‘prejudicando meus colegas’."

Na pandemia, diz Guimarães, não deveria haver protestos, “mas até quando a gente ter que aguentar esse tipo de coisa? Abaixo-assinado não adianta. É uma situação de desespero e ódio.”

O professor e coordenador do Laboratório de Física Aplicada e Computacional da USP (Universidade de São Paulo), Ernane José Xavier Costa, acha que ir para as ruas agora não é a saída.

“É inacreditável como o coronavírus está sendo banalizado. As passeatas nos EUA ocorrem em um momento totalmente diferente, depois do pico de casos. Não que não seja importante o ato, é até tardio, mas não deixo de ser crítico. Qualquer protesto na pandemia, acho de uma ignorância muito grande. Seja por democracia, volta da ditadura, contra o racismo. As vidas são mais importantes”, diz ele.

Costa coordenou o primeiro simpósio no país sobre a população negra na ciência e na tecnologia, em 2008. Liderou o desenvolvimento de um software que decodifica sinais cerebrais responsáveis pelos movimentos de esquerda e direita realizados pela mão e, com isso, conseguiu desenvolver a primeira interface de comunicação cérebro/computador da América Latina.

Costa enumera as vezes em que não o viram como professor, apenas por ser negro. Em uma delas, um aluno no corredor deixou cair um líquido e falou “tio, pode limpar aqui para mim?”. Ele pegou um pano, limpou, entrou na sala e começou a dar aula. “Os alunos ficaram espantados. Me pediram desculpa e disseram que nunca tinham tido na vida um professor negro”, conta.

Em outra ocasião foi a um evento onde iria palestrar e seu motorista —branco de olho claro— foi levado à área dos pesquisadores, enquanto ele foi levado pelo staff ao local reservado a prestadores de serviço.

A greve internacional, diz, “é um exemplo. Demonstração de que esses cientistas têm mais do que só instrução, mas consciência”. Já no Brasil, “vejo total apatia. Me sinto envergonhado de ver a passividade dos cientistas brasileiros em relação ao racismo".

Há algumas semanas, os poucos alunos negros da USP Pirassununga, onde ele leciona, criaram grupo de WhatsApp para discutir a questão racial pela primeira vez.

O professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Claudio Elias da Silva também foi o único docente negro na sua área durante anos. No doutorado em geofísica no Centro de Pesquisas Espaciais Goddard Space Flight Center da NASA, só havia um engenheiro da sua cor. No laboratório, um colega branco não respondia a ele.

Silva tem dúvidas sobre a efetividade de ir às ruas. “Não dá para me expor e contaminar minha família, mas a situação foi tão absurda que a emoção prevaleceu sobre a razão. Minha preocupação é a conotação partidária. Esse assunto deveria estar fora da disputa política. Também espero que não seja uma onda, modismo. Todo mundo foi lá, fez uma foto e acabou”, diz.

O pesquisador Rômulo Neris em laboratório da UFRJ
O pesquisador Rômulo Neris em laboratório da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) - Arquivo Pessoal

A bióloga Simone Maia Evaristo conta que levou tempo até perceber que sempre fora uma das únicas negras da escola à universidade. “A ciência é muito elitizada. Precisamos ter visibilidade”, afirma.
Simone é citotecnologista no INCA (Instituto Nacional de Câncer), no Rio, e trabalha com a análise de células para identificar pessoas que podem desenvolver câncer.

Ela também dá aulas sobre o tema no instituto. Diz não ter se sentido vítima direta de racismo, mas percebe olhares e atitudes preconceituosas.

O biofísico Rômulo Neris conta que sua experiência na academia foi positiva, mas reconhece ser um caso à parte. O biólogo voltou ao Brasil recentemente, após uma temporada como pesquisador-visitante na Universidade da Califórnia onde encaminhou parte do doutorado que faz em imunologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pela universidade americana.

Agora, inicia pesquisa sobre os mecanismos da Covid-19, feita com uma bolsa que recebeu da Dimensions Sciences, organização sem fins lucrativos de apoio à ciência fundada nos EUA por brasileiros.

Neris pondera se deveria haver protestos de rua agora. “As manifestações são legítimas, e as pessoas têm esse direito. Mas é fato que as aglomerações causam aumento da circulação do vírus e cresce o risco de exposição à infecção."

Os cientistas pensam caminhos para que o país embique rumo à igualdade racial na academia.
Para Sônia Guimarães, primeiro é preciso obedecer a lei que diz que todo concurso para docente em universidade pública tenha ao menos 10% das vagas para negros. Hoje, instituições burlam as regras e só contratam brancos.

Para Ernane Costa, primeiro é preciso admitir que há racismo institucional na academia. “Não é normal nem natural a ausência de negros. A USP tem que admitir que falhou e ouvir os pouquíssimos negros que estão na estrutura, para, aí sim, juntos, fazer um plano de emergência e um de longo prazo para a inclusão”.

Afinal, “discutir as ideias e propor melhorias na sociedade é o que está na raiz da academia”, afirma Rômulo Neris.


Relatos do racismo

“Três anos depois que eu entrei no ITA, concursada, doutora, recém-chegada da Inglaterra, me disseram que alguns alunos tinha dito que eu não sabia física e que minha roupa chamava atenção. Fui transferida para uma área onde eu não daria mais aula."
Sônia Guimarães
primeira negra brasileira doutora em física e a lecionar no ITA

“Temos excelentes cientistas negros, que as pessoas nem sabem que existem. Quando reclamo, a universidade diz que não é racista. A discriminação é escondida atrás da suposta meritocracia."
Ernane José Xavier Costa
coordenador do lab de física aplicada e computacional da USP

“Não dá para me expor e contaminar minha família, mas a situação foi tão absurda que a emoção prevaleceu sobre a razão. Minha preocupação é a conotação partidária. Também espero que não seja onda, modismo."
Claudio Elias da Silva
doutor em geofísica e professor da Uerj

“A ciência é muito elitizada. Precisamos ter visibilidade. Muitas pessoas estranham ou ficam chocadas por eu não estar no padrão visual de uma profissional da área."
Simone Maia Evaristo
bióloga e citotecnologista no Instituto Nacional de Câncer

“Minha história é exceção, mas tenho muitos amigos que não seguiram carreira acadêmica ou em ciência, e um dos motivos é a inserção deficitária no ensino superior. Há menos pretos entrando no ensino superior. Existe um histórico de exclusão."
Rômulo Neris
biofísico

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