Que tal pingar ácido lisérgico na bebida dos negociadores do impasse entre Rússia e Otan sobre a Ucrânia? Parece coisa de maluco, mas algo assim já foi tentado --e há lógica no argumento de que iniciar uma guerra ali, hoje, equivale a uma ideia muito, muito mais doida.
A incrível história apareceu no Boletim dos Cientistas Atômicos e envolveu dar MDMA (ecstasy) para oficiais soviéticos em 1985. A dica veio pelo físico e colega Cássio Leite Vieira (não é parente), um dos melhores jornalistas de ciência do Brasil, hoje refugiado em Buenos Aires.
A trama tem como personagem central Carol Rosin, que havia sido especialista da empresa aeroespacial Fairchild Industries e depois fundou o Instituto para Segurança e Cooperação no Espaço. Há 37 anos, trabalhando como consultora em Washington (DC), ela foi a Moscou para negociações nucleares do governo Ronald Reagan com cientistas e militares russos.
Rosin levava na bagagem uma pacoteira com pílulas de MDMA. Era a base do plano desenvolvido com Rick Doblin, um entusiasta de psicodélicos que conhecera no Instituto Esalen, da Califórnia. Figura assídua neste blog, Doblin lidera hoje a pesquisa mais avançada para regulamentar um psicodélico (MDMA) como tratamento de um transtorno mental (estresse pós-traumático).
Rosin levou centenas de pílulas para o apartamento de amigos na capital russa. Eles chegaram com dezenas de frascos de remédio, encheram os vidrinhos e se responsabilizaram por distribuir os tabletes entre pesquisadores e militares que viessem a participar das tratativas nucleares.
"Foi a experiência mais amorosa e maravilhosa que alguém poderia possivelmente ter", disse Rosin a Robert K. Elder, para o boletim. "Não era para curtir um barato, não era para dar uma festa. Não. Era uma questão de paz, amor e cura --e de espalhar isso pelo mundo."
Não se sabe quantos negociadores de fato ingeriram MDMA, se é que isso de fato aconteceu. Há quem duvide, como disse o jornalista Michael Pollan ao boletim, que enviados americanos tenham tomado a droga em terreno hostil, o que soa mesmo para lá de improvável --assim como a perspectiva de que isso possa ter influenciado decisivamente o rumo das negociações.
Por outro lado, é inegável que o composto MDMA, também conhecido como bala, molly e Michael Douglas, predispõe qualquer pessoa a ouvir os outros e dialogar pacificamente. Isso porque ele ocasiona uma inundação de empatia em quem a toma, como já testemunhou este jornalista.
"A ideia era que, se eles [negociadores] pudessem trabalhar com seus medos e traumas e sentir sua conexão com a humanidade, então isso poderia servir de ajuda", argumentou Doblin a Elder. Naquela época, corria entre jovens a noção de que psicodélicos poderiam salvar o mundo, abrindo as consciências para o valor da vida, da paz e do amor.
Soa ingênuo hoje, com o mundo sufocado em maledicência, cancelamentos, notícias fraudulentas e ódio disseminados pelas redes sociais. Cabe lembrar, porém, que drogas alteradoras da consciência (maconha, LSD e psilocibina à frente) formaram parte definidora da chamada contracultura, o movimento hippie dos anos 1960/70 que contribuiu para enterrar a Guerra do Vietnã em 1975.
Não foi só a contracultura, decerto, mas a progressiva revelação dos fracassos militares no Sudeste Asiático (para não falar das atrocidades, como uso de napalm e massacres como o de My Lai). Um golpe fatal na imagem da campanha militar se dera com a revelação dos Documentos do Pentágono (Pentagon Papers), em 1971, e aqui também os psicodélicos podem ter exercido um efeito marginal.
Os documentos mostrando que quatro presidentes americanos haviam enganado o público sobre a guerra e seus objetivos foram vazados para a imprensa por Daniel Ellsberg. Ellsberg se identifica hoje como uma "pessoa dos psicodélicos", conforme relata Adele Meyer na newsletter Lucid News.
O ex-funcionário da Rand Corporation, onde copiara milhares de páginas do relatório comprometedor, não esconde que tomou LSD centenas de vezes. Ele chegou a ser processado pelo vazamento e arriscou-se a pegar 115 anos de cadeia, mas as acusações acabaram retiradas.
Na primeira de três partes da entrevista que Lucid News começou a publicar em 24 de janeiro, Ellsberg afirma que o LSD não teve relação direta com a decisão de vazar o relatório. Sua primeira viagem lisérgica havia ocorrido em 1960, e ele passou a copiar os papéis oito anos depois. Nesse meio tempo, passou dois anos no Vietnã.
Por outro lado, o ácido era coisa comum no círculo de pacifistas que frequentava. Ainda hoje Ellsberg diz acreditar que uma mudança profunda da consciência seja necessária para o mundo melhorar e enfrentar a crise climática, entre outros flagelos, mas não está seguro de que isso venha a acontecer nem de que psicodélicos possam acelerar a transformação.
"A percepção com o ácido, penso eu, confirma um lado do que Albert Einstein disse uma vez, que há duas maneiras de olhar para o mundo. Uma é que milagres não existem", disse Ellsberg a Meyer. "A outra é que tudo é um milagre. Acho que uma percepção muito clássica do ácido é que aquilo em que estamos envolvidos, em que estamos imersos, sabe, tudo é miraculoso.
Para o homem que deu ao mundo os Documentos do Pentágono, coisas que nem sequer imaginamos de fato acontecem, é verdade. São como milagres, que felizmente ocorrem: "Obviamente, é muito fácil acreditar em milagres sob efeito do ácido. E o próprio ácido é um milagre!
Do jeito que as coisas caminham mal em torno da Ucrânia, um milagre viria bem a calhar.
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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"
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