Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

Vidas Atípicas - Johanna Nublat
Johanna Nublat
Descrição de chapéu Todas

Viagem mostra como 'aldeia' é crucial para as famílias atípicas

Casal de professores da UFMG conta a experiência do pós-doutorado com o filho autista nos EUA

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

No fim de 2023, Maria Luísa Nogueira, 48, e Jardel Sander, 50, postaram em suas redes sociais desabafos sinceros sobre o desafio que o casal tinha acabado de enfrentar: conciliar alguns meses de pós-doutorado no exterior com a rotina do filho Francisco Sander, 12, autista nível 3 de suporte.

Ambos professores da Universidade Federal de Minas Gerais (ela da Psicologia e ele da Educação), Malu e Jardel começaram a organizar a viagem ainda em 2018. A pandemia adiou os planos da família, que voltou a se organizar para passar três meses nos Estados Unidos no ano passado.

"Desde o começo pensamos muito sobre como seria com o Chicão. O projeto sempre foi irmos os três", diz Jardel sobre o filho.

No meio do caminho, contam, impactado pelo isolamento da pandemia, pela chegada da puberdade e por uma experiência tóxica na escola, o grau de suporte que Francisco precisa no cotidiano aumentou, passando para o nível 3, tornando os planos de viagem mais desafiadores.

Os planos foram feitos e refeitos múltiplas vezes. Malu teria compromissos profissionais na Filadélfia e Jardel, em Nova York.

A ideia era que Francisco frequentasse uma escola americana durante os meses do pós-doc dos pais, o que se mostrou inviável. "Primeiro tem uma questão ideológica: as escolas nos Estados Unidos não são inclusivas, elas são especializadas. Já fiquei bastante incomodada com isso, porque não é uma coisa em que eu acredito, pelo contrário. Eu entendo a importância de estarmos todos juntos. Somos uma só humanidade", diz Malu.

Além disso, encontrar uma escola ainda no Brasil, para que o filho já chegasse nos Estados Unidos com aulas engatilhadas, se mostrou impossível. Assim, considerando o tempo de busca da escola e o de adaptação, tudo isso enquanto o casal trabalhava no exterior, Malu, Jardel e a equipe terapêutica de Francisco concluíram que seria melhor que o menino ficasse no Brasil, com os avós, seguindo sua rotina, ao menos durante a primeira metade da viagem dos pais. Malu e Jardel viajaram.

"A gente montou toda uma estrutura para o Francisco. Aumentamos as horas de acompanhante terapêutica em casa — a equipe dele é incrível e estava toda à disposição. Mas, como era de se esperar, ele teve duas crises. Dois grandes meltdowns. A gente fez historia social, ele sabia o que que estava acontecendo, mas ele sentiu [a nossa ausência] e a forma de expressar dele [é essa]", conta Malu.

"Em dois dias, eu estava de volta [a Belo Horizonte]", diz Jardel.

Malu seguiu para a Filadélfia para acompanhar um grupo de pesquisa que trabalha o modelo Denver em ambientes coletivos. Jardel precisaria voltar aos Estados Unidos, para um seminário em Nova York algumas semanas depois. Novos planos foram feitos, dessa vez envolvendo a tia de Francisco, que viajou a Belo Horizonte dias antes da viagem de Jardel para entender melhor como lidar com o cotidiano do sobrinho. Esse era o arranjo provisório. Dias depois da ida do pai, era Malu quem estava de volta ao Brasil, dessa vez para buscar o filho para a parte da viagem onde todos estariam juntos.

O desafio do avião

"Um dos grandes nós dos nossos planos era como fazer uma viagem longa com o Chicão. Ele já viajou muito de avião. Mas em outra idade, outro nível de suporte e outras distâncias", relata Jardel.

Malu recuperou contatos na Gol, que a ajudaram em uma viagem anterior com o filho, e conseguiu garantir apoio no trecho Confins - São Paulo. "Quando pousei em Guarulhos, tinha uma pessoa esperando a gente. O que foi ótimo, porque eu estava sozinha com ele, estava com a mochila e a mala de mão. Atravessamos o aeroporto inteiro, um calor infernal", relembra.

Ela tentou refrescar o filho com banhos possíveis no aeroporto, mas a espera na conexão foi deixando o menino impaciente. "Ele ficava apontando para a mochila e o avião. Ele queria embarcar. Começou a ficar bravo, jogou o telefone no chão. Fui na companhia aérea, falei que tínhamos que estar entre os primeiros a embarcar, que meu filho estava tendo uma pré-crise. Eu pensei ‘se não der, não deu, volto para casa, alugo um carro, vou para um hotel’", conta Malu.

A companhia aérea foi sensível, os dois embarcaram e Francisco logo dormiu (o voo todo). "Ter sido bem orientada [pelo psiquiatra] foi muito importante. Eu consegui ir aumentando a medicação à medida que ele foi precisando. Já tinha preparado as doses na seringa", diz.

A preocupação pelo voo era tão grande, que Malu distribuiu cartões explicativos sobre o autismo para seus vizinhos de poltrona, junto com chocolates e protetores auriculares.

No desembarque, também houve apoio. "Eu avisei a Gol e a American Airlines, e a Gol fez um grupo com a American pra dar o suporte para esse voo. É bom para nós e é bom para eles. Ninguém enfrenta situação difícil se a tripulação sabe o que fazer. A rigidez do autismo existe, [é preciso] que as pessoas sejam um pouco mais flexíveis", diz a professora.

Um homem de óculos faz uma selfie mostrando ele, a mulher e o filho
Malu, Jardel e o filho Francisco, em viagem aos Estados Unidos - Arquivo pessoal

Passada a tensão e já na companhia de Jardel, a família ficou uns dias em Nova York e pegou o trem para a Filadélfia. Lá ficariam em uma casa alugada por alguns dias de trabalho antes de uma viagem à Disney, que já tinha sido negociada com Francisco, cujo foco de interesse é a Pixar.

"A construção da viagem estava sendo feita em cima de coisas que ele conhece e gosta. Pensamos em ir nos lugar que aparecem nas animações de que ele gosta. O zoológico, o museu de história natural. Fizemos prints das cenas para prepará-lo", explica Jardel.

O desafio da inclusão

Na Filadélfia, escolheram uma casa em que poderiam ter mais privacidade e onde Francisco teria mais liberdade. Organizaram atividades diárias para o filho, como idas ao museu e ao zoológico, entre suas atividades profissionais.

"Logo que chegamos, fomos ao zoológico, ele amou. Eu achei massa que, na hora de ir embora, a gente foi na lojinha e ele não quis comprar o lêmure, do Madagascar [animação que ele adora]. Ele comprou a miniatura de um bicho que ele viu lá, um panda vermelho. Achei cheio de sentido, que ele estava se apropriando daquela experiência. De lá, fizemos supermercado para ficar essa semana. Tudo ajeitado. E, aí, toca campainha, eu abro a porta e tem uma mulher com cara ruim. E pergunta: vocês têm criança ou algo assim? Já meio coisificado o jeito de ela falar", lembra a professora.

A vizinha se irritou com ruídos das brincadeiras de Francisco e não se sensibilizou quando ouviu que ele era autista. Disse que tinha um sobrinho autista, mas que a criança ficava sentada, e que a família tinha que sair imediatamente da casa, ameaçando o casal com um dedo na cara.

"Eu falei ‘pois o autismo tem níveis, meu filho é autista nível 3’. Ela disse que não se importava, que a gente tinha que controlar nosso filho, que não ia ‘lidar com essa merda’ e foi piorando o tom. Eu falei ‘ele tem uma deficiência’. Minha vontade era falar 'ele tem uma deficiência, qual é a justificativa para o seu comportamento?’", diz a mãe.

"Ela disse ‘você tem que ir embora agora, bitch [cadela]", relembra Jardel. "É, ainda me chamou de bitch", completa Malu.

Traumatizado, o casal resolveu encurtar a viagem mais uma vez. Deixou a Filadélfia para, como prometido, levar o filho uns dias à Disney e já voltar ao Brasil.

A importância da aldeia

Refletindo sobre a viagem, Malu, que coordena o Laboratório de Estudo e Extensão em Autismo e Desenvolvimento da UFMG, afirma que é "muito importante não desaparecer por detrás das demandas da maternidade atípica". "Profissionalmente, foi uma experiência ímpar, aprendi muito, mas insistir [em estar lá] foi um gesto de auto cuidado, até de ‘juventude'. Consegui estar lá. Mesmo sendo menos tempo e de outro modo do que o planejado, foi importante realizar algo que era para mim, que é também para os projetos que desenvolvo e que impactam meus alunos e as famílias. Mas, sobretudo, para eu ver que o que fazemos na UFMG está bem sintonizado clínica, científica e eticamente."

"A gente estava lá como profissionais. Como a gente concilia nossas atividades profissionais com nosso filho que tem necessidades especiais?", questiona Jardel. "Não é como um filho típico, que vai fazer as coisas dele e você vai ter seu tempo. [No Brasil] a gente tem rede de amparo, rotina, atividades dele que nos permitem fazer nossas atividades profissionais."

A importância da rede de apoio (a chamada aldeia), aliás, é um ponto reforçado pelos dois professores.

"Se a aldeia não está pronta, construa ela. Vá atrás de outras mães atípicas. Se a família não sabe o que fazer, ensine. Ela nunca vai estar pronta, porque todo mundo tem que aprender, e para aprender tem que conviver. Por isso, a lógica segregacionista me machuca tanto. Só vamos saber o que fazer com a pessoa autista se a gente tiver convivido com ela", conclui Malu.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.