Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

Vidas Atípicas - Johanna Nublat
Johanna Nublat

O autismo visto como uma diferença, e não algo a ser corrigido

Mudança de perspectiva 'nos ajuda a viver nossas melhores vidas como pessoas autistas', diz especialista

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Ver o autismo como uma diferença. E não como um déficit, em relação à maioria da população (neurotípica), que deve ser corrigido.

Essa mudança radical de perspectiva, levantada nos últimos anos pelo movimento da neurodiversidade, é necessária para dar voz aos autistas, respeitar comportamentos que fogem da regra e garantir o suporte de que pessoas autistas necessitam, explica Steven Kapp, autista e professor especialista em autismo e neurodiversidades da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido.

Imagem do livro 'Menino Baleia', de Lulu Lima
Imagem do livro 'Menino Baleia', de Lulu Lima, sobre um garotinho autista - Reprodução

Em entrevista por escrito ao blog, Kapp fala sobre a evolução na maneira como vemos o autismo, faz críticas à terapia tradicional baseada em ABA (tida em muitos países, como Estados Unidos e o Brasil, como o padrão ouro em casos de autismo), rejeita a subdivisão do autismo em categorias como o autismo profundo, e fala a crianças recentemente diagnosticadas como autistas.

"Parabéns e bem-vindo à comunidade autista. Muitas pessoas autistas têm orgulho de ser autistas, porque é parte de como somos. Não é fácil e nem sempre é maravilhoso ser autista, mas existem vantagens seletivas e, às vezes, a vida é mais dura porque os outros não nos entendem. Mas isso está começando a mudar à medida que as pessoas entendem mais sobre nós e começam a nos aceitar."

O que significa tratar o autismo não como um transtorno, mas como uma diferença? Autismo é uma diferença no sentido em que inclui tanto potências quanto fragilidades, até geralmente para pessoas com as mais altas necessidades de suporte. Também inclui diferenças neutras. Às vezes, potências funcionam como desafios, como os hiperfocos que podem fazer com que alguém gaste muitas horas concentrado em completar uma tarefa, às custas de sua saúde e de outras áreas. Então, essas diferenças são complexas, e maneiras diferentes de pensar são necessárias para a sociedade funcionar plenamente. Tratar o autismo como diferença significa nos ajudar a viver nossas melhores vidas como pessoas autistas. Tratar o autismo como um transtorno significa tentar eliminá-lo — tentar evitá-lo ou curá-lo. Significa encarar qualquer coisa que seja diferente como parte da patologia e procurar a causa do autismo. Apoiadores da perspectiva do transtorno gastaram muito dinheiro procurando por uma causa do autismo, e fizeram mal a pessoas autistas tentando soluções desesperadas para tratar o autismo. O movimento da neurodiversidade tem ajudado a promover essa mudança de perspectiva. Ele é liderado por autistas e outras pessoas com deficiências neurológicas ou neurodivergências, e busca a inclusão de neurodivergências como o autismo. Pesquisas que co-liderei já mostraram que, quanto mais as pessoas se tornam conscientes do movimento da neurodiversidade, mais provável é que elas concordem com suas visões.


Você já escreveu sobre uma evolução na maneira como lidamos com o autismo: da culpa de ter provocado o autismo até chegar ao movimento da neurodiversidade. Como isso evoluiu ao longo do tempo? Quando Leo Kanner introduziu o autismo para o mundo anglófono, em 1943, teorias freudianas que culpavam os pais — especialmente as mães — por desafios enfrentados pelos filhos eram muito populares. A teoria do autismo da "mãe geladeira" separou famílias e colocou crianças autistas em instituições, apesar da falta de evidências para a necessidade ou o efeito disso. Os pais reagiram e lançaram um movimento de cura para tratar o autismo como um transtorno biomédico. Eles excluíram pessoas autistas (até por fazerem conferências em espaços muito cheios e barulhentos, com luzes fortes), e a linguagem e os conceitos que eles expressavam também eram pouco convidativos. Pessoas autistas reagiram lançando o movimento neurodivergente para criar um espaço seguro e para imaginar um mundo melhor para pessoas autistas, com pessoas não autistas geralmente bem-vindas como aliadas. Ele ganhou influência, mas o modelo médico ainda é dominante. Por exemplo, a maior parte da pesquisa sobre autismo é usada para tentar encontrar suas causas, em vez de identificar suportes práticos para pessoas autistas [usarem] nesse momento, como maneiras efetivas para pessoas autistas não-falantes se comunicarem.

Como balancear o respeito pela diversidade com a necessidade de que a pessoa desenvolva importantes habilidades para a vida? O movimento da neurodiversidade prioriza o desenvolvimento de habilidades úteis, por exemplo maneiras para todas as pessoas autistas se comunicarem funcionalmente. Assim, começa por focar na deficiência, tentando melhorar o funcionamento. Ele, no entanto, não parte do pressuposto que o funcionamento precisa ser típico, mas busca que pessoas autistas floresçam como pessoas autistas. O modelo médico usado em terapias baseadas em ABA [análise aplicada do comportamento] parte do pressuposto que o autismo em si mesmo diretamente causa deficiência. Como pesquisas têm mostrado, às vezes pessoas autistas sofrem por incompreensão e discriminação; pessoas não autistas, com frequência, não compreendem pessoas autistas e são rápidas em fazer julgamentos negativos contra nós. Às vezes, comportamentos pouco usuais que temos nos ajudam: como balançar as mãos ou o corpo (conhecido como stimming) ajudam a nos acalmar (como pesquisas que comandei mostraram) ou evitar o contato visual nos ajuda na concentração e em evitar a sensação de sobrecarga. Terapias baseadas em ABA tradicionalmente por si só buscam a normalização, incluindo a eliminação de stims e a busca por fazer contato visual. Faz isso ao pedir que pessoas autistas sejam clientes cumpridores da terapia por muitas horas por dia, enquanto que pessoas autistas precisamos aprender a nos defender — o que não vem naturalmente para muitos de nós, mas pode nos ajudar a alcançar o que precisamos.


Por que você acha que o termo "autismo profundo" não ajuda? Não existe uma maneira válida e confiável de subdividir o autismo. Tentar dividir pessoas autistas em subgrupos tem significado não conseguir o apoio personalizado de que elas precisam. "Autismo profundo" não é definido pelo autismo ou por traços autísticos, mas por outras deficiências — deficiência intelectual ou de linguagem. Pessoas autistas com essas deficiências adicionais deveriam ser diagnosticadas com elas também e conseguir o suporte de que precisam. Pressionar pelo autismo profundo é uma maneira de tentar ignorar os porta-vozes autistas, argumentando que eles têm algo em separado. Os apoiadores desse termo argumentam que pessoas com "autismo profundo" não podem argumentar por si, mas não oferecem nenhuma evidência nesse sentido. Ao contrário, todas as pessoas autistas defendem seus próprios interesses. Isso não requer linguagem, é sobre a expressão de seus desejos e necessidades. Pessoas não autistas, com frequência, falham em entender a comunicação de pessoas autistas não-falantes, mas poderiam aprender muito ouvindo pessoas autistas, que podem ajudar a explicar o comportamento e maneiras potenciais de nos ajudar.


O que você diria aos pais de uma criança que acabou de ser diagnosticada como autista? Lembrem que diagnósticos dão explicações em linguagens muito baseadas em déficit que não são holísticas — não é preciso e nem é a "imagem completa". Aprendam como o autismo se aplica à sua criança, tanto em termos de potenciais, de desafios e simplesmente de diferenças. Tentem explicar o autismo o quanto antes à sua criança de uma maneira balanceada, personalizada e apropriada em termos de desenvolvimento — já contribuí com pesquisas que sugerem que isso ajuda a que pessoas autistas desenvolvam uma identidade mais positiva e tenham maior grau de bem-estar. Ouçam os porta-vozes autistas, que entendem traços comuns e têm percepções sobre eles.

O que você diria a uma criança que acabou de receber o diagnóstico de autismo? A linguagem dependeria da idade e da compreensão da criança, mas talvez eu dissesse: parabéns e bem-vindo à comunidade autista. Muitas pessoas autistas têm orgulho de ser autistas, porque é parte de como somos. Não é fácil e nem sempre é maravilhoso ser autista, mas existem vantagens seletivas e, às vezes, a vida é mais dura porque os outros não nos entendem. Mas isso está começando a mudar à medida que as pessoas entendem mais sobre nós e começam a nos aceitar.

Quer dizer algo mais? Eu recomendaria compartilhar "Don't Mourn for Us" [Não Chore Por Nós], já que esse ensaio (originalmente uma apresentação) é algo como o manifesto do movimento da neurodiversidade. O blog post do ativista autista Nick Walker "Jogue fora as ferramentas do senhor: libertando-nos do paradigma da patologia" está traduzido para o português.

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