Dez anos atrás participei de um processo seletivo de estágio que poderia ter mudado minha vida. Estava esperançoso, havia passado pelas fases de dinâmica de grupo, provas de português, matemática, conhecimentos gerais e inglês e alcancei a etapa final, a entrevista com gestores. Três, bastante experientes, brancos, sendo um deles do departamento de recursos humanos.
A certa altura, um dos gestores pergunta meu endereço exato. Era o Jardim Noronha, no extremo sul da cidade. Em linha reta, mais próximo da Praia Grande do que da Sé. O entrevistador citou uma das avenidas do Grajaú, o distrito no qual ficava o bairro. Eu disse que passava por lá todos os dias. Ele fez uma expressão de espanto e perguntou "e como você vai fazer para chegar aqui todo dia?".
Honestamente, não acredito que eu tenha perdido a vaga por essa questão, mas é um choque olhar para trás uma década depois e pensar que a localização geográfica seja um critério de classificação numa vaga no mercado de trabalho, e não requisitos técnicos, habilidades, formação acadêmica.
As discussões sobre diversidade e inclusão no mercado de trabalho inverteram esse cenário. Agora, recrutadores privilegiam conhecer pessoas pretas, pardas, indígenas, LGBTQIA+, mães solo, moradores de áreas periféricas. É um primeiro recorte, claro, ninguém é admitido por estar fora do padrão que se normalizava até ontem. Ou ao menos não deveria.
Na mídia isso tem acontecido também. As escolhas de vencedores da última edição do Oscar têm rendido críticas. A academia ignorou por anos as minorias e agora tenta correr contra o tempo, desapontando muitos críticos, que apontam que os grandes nomes e a arte de maneira geral vêm perdendo espaço para a "lacração".
Esse novo jeito de olhar para a sociedade gera incômodo em pessoas brancas, com dinheiro, heterossexuais, moradoras de endereços dignos porque cria uma distorção mesmo. Mas é importante lembrar que o movimento não é um ataque, e sim uma resposta. Pessoas dentro do padrão de raça, gênero e origem sempre foram vistas como talentosas, habilidosas. Quando não, conheciam o diretor fulano que era amigo do tio beltrano e tcharam!, já estavam empregadas, e quase sempre qualificadas, matriculadas nos melhores cursos, subiam como foguete.
Pretensamente, agora é essa gente que tem sido definida por seu CEP, sua cor, sua sexualidade. E isso, como sempre soubemos nós, que estávamos na fila, sob sol e chuva, é devastador.
Às militâncias e aos departamentos de RH aficionados por diversidade cabe refletir em que grupo estão os brancos periféricos, as mulheres brancas pobres sobrecarregadas, as mães solo e as pessoas não brancas de pele não retinta. Talvez sejam estas as pessoas mais atingidas por essa distorção. Os ricaços certamente já foram para o divã.
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