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Descrição de chapéu mudança climática chuva

Tragédia anunciada no litoral da desigualdade

Perda de vidas poderia ter sido evitada com auxílio da ciência

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Pedro Arantes Maria Angélica Minhoto Soraya Smaili Com a colaboração de Décio Semensatto
São Paulo (SP)
Imagem estilizada com fachadas de casas e favelas com rastros caindo da parte de baixo como chuva.
Meyrele Nascimento / SoU_Ciência

A tragédia das chuvas ocorrida no litoral norte de São Paulo não é apenas um efeito climático. Ela ensina, de modo cruel, o custo social, ambiental e econômico de uma urbanização predatória, desigual e com baixa regulação e ação pública. À parte de prejuízos econômicos, estão as dezenas de vidas perdidas, que são o mais importante e o mais a lamentar. Neste momento, urbanistas, geógrafos, climatologistas e outros cientistas são chamados pela imprensa para explicar as causas da tragédia e o contexto que produz essa situação. Contudo, a participação dos pesquisadores infelizmente se encerra por aí, mesmo diante da constante disposição em apoiar as autoridades na prevenção de desastres "naturais" – que são causados, sobretudo, pela ação descontrolada do interesse privado na região e ausência de planejamento público para incluir a todos em condições seguras de moradia e vida.

O litoral norte de São Paulo começou a ser "desbravado" pelo mercado imobiliário de residências de veraneio em grande escala com a abertura da estrada Rio-Santos, iniciada em 1969, durante o Regime Militar, com o apelido de "Estrada do turismo". Em busca de emprego, milhares de trabalhadores e suas famílias vieram para a construção da estrada, das casas de veraneio, condomínios fechados, marinas e demais resorts. O contraste entre os "acampamentos" informais de trabalhadores, que foram se consolidando como moradias precárias dos prestadores de serviços, e as residências de luxo onde trabalham é uma das marcas sociais deste trecho de litoral que é um dos mais desiguais do país.

Ao longo destas décadas, as áreas sem interesse imobiliário e de maior risco geológico e ambiental foram sendo ocupadas ou destinadas aos trabalhadores. Municípios da região, mesmo se beneficiando da renda e dos impostos de uso do solo e do turismo (e do petróleo, como São Sebastião), pouco investiram em projetos habitacionais, de saneamento, drenagem, contenções e infraestrutura.

Já os proprietários e turistas ignoram para onde vão os trabalhadores que os atendem, como se, ao saírem de suas vistas, se desmaterializassem. É o fenômeno da invisibilização dos trabalhadores após o expediente, quando as suas condições materiais de vida são socialmente esquecidas (ou apagadas), sem a proteção social, investimentos públicos e privados e a garantia de direitos que seria devida.

Soma-se a isso o fato de que, há anos pesquisadores apontam que a urbanização acelerada do litoral norte de São Paulo, em área de solos frágeis e grande pluviosidade típica de trópico úmido produziria situações de risco cada vez mais graves, desprezadas pelos empreendedores e pelas autoridades.

Esse contexto não é único no Brasil, ao contrário, está mais próximo da regra. A urbanização desigual e predatória concentra riqueza e externaliza riscos, expondo os mais pobres à moradia precária em morros, várzeas, alagadiços e áreas mais frágeis ambientalmente. Não por acaso, são raras as ocasiões em que casas de luxo são expostas a alagamentos. A situação no litoral de São Paulo foi tão grave que até elas foram atingidas.

Além das questões de urbanização desigual e predatória do solo, é importante destacarmos que estamos cada vez mais expostos a eventos climáticos extremos – amplificando riscos para os mais vulneráveis. Novamente, há décadas cientistas começaram a alertar autoridades em todo o mundo sobre as consequências da aceleração das mudanças climáticas, tendo como sua maior referência o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2007. As previsões indicam que se seguirmos no ritmo de degradação ambiental e emissões atmosféricas, os eventos climáticos extremos serão mais intensos e mais frequentes. No litoral norte foram registradas chuvas torrenciais que bateram recordes históricos.

Mas, como explicamos, a tragédia que observamos não é apenas uma questão de quantidade de chuva. Explicações demasiadamente simples, como "a culpa é das mudanças climáticas" ou "as casas não deveriam ser construídas nas encostas" não dão conta de entendermos adequadamente a situação e prevenirmos novos desastres. É preciso saber conectar as diversas dimensões e interpretar como elas se relacionam.

Certas decisões político-econômicas tomadas pelas autoridades sem ouvir cientistas e as comunidades envolvidas, podem representar a morte de inúmeras pessoas. Esse padrão de risco socioambiental transferido aos mais pobres é recorrente em diversos países. Precisamos reverter esse quadro de injustiça socioambiental, com políticas públicas que se baseiem nas pesquisas científicas que alertam riscos e orientam as ações que devem ser tomadas. É também preciso que os municípios passem a compreender melhor o seu contexto nas mudanças ambientais e climáticas para estruturar e aplicar planos de prevenção e contingência em eventos naturais extremos.

Cientistas no Brasil estão preparados para exercer esse papel. Mas, estarão as elites, que ficaram ilhadas nas suas casas de luxo e passaram por um aperto nesse carnaval, dispostas a rever o seu modelo de desenvolvimento, urbanização desigual e perversa? Assumirão que são também corresponsáveis pela tragédia e ajudarão os poderes públicos a encontrar o rumo do desenvolvimento sustentável na região, a começar protegendo as comunidades de trabalhadores que os atendem?

Nós pesquisadores já produzimos diversas análises, resultados e recomendações que podem contribuir com as autoridades locais, regionais e nacionais. A enorme parte destes resultados foi gerada nas universidades públicas com apoio dos impostos pagos por todos os contribuintes e estão à disposição para serem integrados à agenda política, urbana, ambiental e econômica do país.

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