Com imagens de pontes cruzando rios, córregos a céu aberto e perseguições policiais no Capão Redondo, bairro do extremo sul de São Paulo, e ao som da música "Da Ponte pra Cá", começa "Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo", um documentário da Netflix, produzido pela Preta Portê Filmes, e dirigido pela cineasta Juliana Vicente.
Com acervo inédito sobre momentos históricos da banda e de uma São Paulo periférica no anos 1990, a obra, que será lançada oficialmente no dia 16 de novembro na plataforma de streaming, antecipou sua estreia no dia 31 de outubro em uma sessão especial na Cinemateca, durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
O filme conta a história do grupo, composto por Mano Brown, KL Jay, Edi Rock e Ice Blue, desde a adolescência de cada integrante, como se conheceram, suas vitórias, problemas com a justiça e toda trajetória que transformou os Racionais MCs no principal grupo de rap do Brasil.
A violência na periferia de São Paulo nos anos 1990 tem grande destaque em todo este enredo, em alguns momentos as imagens de perseguições policiais e de pessoas mortas em estradas de terra ganham tempos longos na tela enquanto músicas do grupo são tocadas ao fundo.
Esses momentos mais macabros são para argumentar o porquê dos primeiros quatro discos do grupo —"Holocausto Urbano", de 1990, "Escolha seu Caminho" de 1992, "Raio X do Brasil" de 1993 e "Sobrevivendo no Inferno", de 1997— têm letras tão pesadas e muitas vezes com sonoridades góticas.
O documentário destaca que os primeiros dez anos do grupo é marcado pelo repentino sucesso e por se tornarem a voz da periferia. E com o sucesso veio a perseguição policial e de outros órgãos do estado de São Paulo.
Um dos momentos lembrados com imagens históricas foi a prisão do grupo durante um show no vale do Anhangabaú, região central de São Paulo, em novembro de 1994. Segundo Brown, depois de cantar o verso "Não confio na polícia raça do caralho", da música "Homem na Estrada", os policiais que estavam fazendo a segurança do evento subiram ao palco e pediram para acabar o show e levaram os quatro integrantes da banda preso.
A linha do tempo que conduz o documentário são os sete discos do grupo, um deles sendo a coletânea "Consciência Black" de 1989, este foi o primeiro álbum com músicas dos Racionais MCs. A cada disco, histórias se misturam aos versos de músicas conhecidas dando sentindo as canções.
A vida pessoal dos integrantes não aparecem muito durante o longa. Mas uma das histórias relevantes que surge é o casamento do Mano Brown com Eliane Dias, relação que se mantém há 34 anos. Outro momento um pouco mais triste durante o longa é quando o Edi Rock resolve contar sobre o acidente que ele se envolveu em outubro de 1994 na Marginal Pinheiro deixando uma pessoa morta.
Durante o depoimento, o cantor se emociona ao lembrar que aquele episódio podia ter acabado com o grupo, e ainda diz que ele era inexperiente e fazia muita bobagem na época, o que levou ao resultado trágico.
Quando chega a vez de falar sobre "Sobrevivendo no Inferno", disco que levou o grupo a concorrer prêmios internacionais e que virou livro, Brown comenta que esse álbum tirou o Racionais da periferia. "Aquele disco ouvido por universitário e professor, a favela não ouvia".
Neste momento aparece um tiroteio durante um show seguido de um depoimento do Brown. "Jogaram um corpo nos meus pés. Eu era o líder deles, eu tinha que resolver o que fazer com o morto. Enquanto isso, pessoas pisavam por cima do morto para pedir autógrafo".
Depois desse disco, o grupo resolve voltar às origens, cada um no seu bairro periférico e voltar a viver mais com periferia, suas famílias e filhos. Essa pausa vai até 2002, com imagens do presidente Lula na posse do seu primeiro mandato e o lançamento de "Nada como um Dia após o Outro Dia", disco lançado naquele ano.
Outro ponto alto da trajetória do grupo foi a confusão durante a Virada Cultural de São Paulo em 2007. Durante o show em um palco na praça da Sé, policiais entraram no meio do público durante uma perseguição a uma jovem negro, o que desencadeou o tumulto que culminou em pessoas feridas e na proibição dos Racionais fazerem shows gratuitos em lugares abertos em São Paulo.
Isso só mudou em 2013, novamente em uma Virada Cultural. Com a mediação de Eliane Dias, que é advogada, a prefeitura naquela época concordou em retirar a polícia do local do show, durante a apresentação naquele ano.
Brown ainda comenta que a volta do grupo, que promete lançar disco em 2023, é motivada pelo momento em que vive a juventude negra no Brasil. Segundo ele, o clima de luta e reconhecimento da raça são os mesmos que viveu nos anos 1980.
"Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo" já é um dos documentários mais importantes da música nacional, quem é fã talvez sinta falta de alguma história, mas como registro do grupo de rap que formou a cena musical do ritmo durante os anos 1990 e 2000, o longa, assim como os discos, será uma obra que será apreciada pelas próximas gerações.
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