Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

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Saúde da população negra importa

Ainda há quem negue a desigualdade racial na saúde, apesar de evidente

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Rony Coelho Gisele Campos

Em recente editorial, a revista científica Cadernos de Saúde Pública defendeu enfaticamente o uso dos recortes raciais nas pesquisas e publicações em saúde. Um dos motivos, destacou: porque há implicações antirracistas.

A contundente argumentação segue o caminho de outras publicações internacionais da área das ciências biomédicas, como o Journal of the American Medical Association. O movimento dessas revistas dá-se em virtude de que surgiram questionamentos, por parte de negacionistas, sobre a pertinência dos conceitos de raça e racismo nas análises da saúde. Negacionismo esse, aliás, que se alastra por diversas esferas da vida social contemporânea.

Pelo menos desde os anos 1990, pesquisas demonstram consistentemente que o fator raça, em diversas sociedades, é um importante determinante social da saúde. Segundo David R. Williams, professor de Saúde Pública de Harvard e um dos pioneiros nessas investigações, desigualdades raciais em saúde prevalecem mesmo quando há ajustes socioeconômicos de renda ou escolaridade.

Isso quer dizer que, quando comparados desfechos em saúde de pessoas de mesmo nível de renda ou de escolaridade, há desfavorecimentos nos resultados negativos para as pretas ou pardas. São sólidos os achados desta variável preditora em muitas situações.

Um profissional da saúde negro cuida de uma paciente negra em um hospital. Ele mede sua pressão com um aparelho.
A desigualdade racial é profunda na saúde, tanto entre atendentes quanto entre pacientes - Hush Naidoo/Unsplash

No Brasil, mulheres negras têm mais risco de sofrer violência obstétrica e os óbitos maternos atingiram 65% delas, segundo dados da Fiocruz, em 2018. Há poucos anos, a ONU fez alerta, com base em dados oficiais, de que, no Brasil, negros têm mais problemas de saúde evitáveis, como mortalidade de recém-nascidos antes dos seis dias de vida, infecções sexualmente transmissíveis, hanseníase e tuberculose, além de estarem mais expostos a morte violenta intencional.

Na pandemia, estudo do Instituto Pólis demonstrou que, na cidade de São Paulo, apesar de mais jovem, a população negra foi proporcionalmente mais afetada pelo vírus que atinge mais os mais velhos. Ou seja, o número de óbitos esperados entre pessoas pretas e pardas deveria ser significativamente menor do que o observado pelos registros oficiais.

Esses dados de saúde desfavoráveis à população negra de certa forma são espelho daqueles encontrados em espaços de poder político e econômico. Apesar de serem 56% da população brasileira, conforme os números mais recentes do IBGE, negros e negras na Câmara dos deputados, eleita em 2018, são apenas 24%. E isso ainda porque houve uma melhora neste quesito, tendo sido aumentada a representatividade deste grupo em 5% em relação à eleição de 2014.

No mundo empresarial, menos de 5% de trabalhadores negros têm cargo de gerência ou diretoria, sem falar nas disparidades salariais quando comparados ocupantes de mesma posição. O racismo estrutural e institucional em saúde diz respeito não apenas ao cuidado e ao atendimento, mas também à discriminação em relação aos profissionais de saúde de pele negra.

A start up AfroSaúde tem reverberado uma interessante e desconcertante questão, que nos faz refletir: apesar de ser a maioria da população, quantos médicos e médicas negras você conhece e por quantos já foi atendido? É amplamente conhecido que nos cursos das áreas médicas os negros são minoria, apesar dos pequenos avanços dos últimos anos em virtude de políticas afirmativas como as cotas raciais.

Ademais, quem acompanha o cotidiano de profissionais de saúde negros e negras com frequência ouve relatos de discriminação. Em 12 de março último, por exemplo, a socorrista Laura Cardoso, do SAMU, denunciou que, ao ir ao atendimento de uma paciente, um familiar gritou ao vê-la: "E agora, ela é negra?". Ao que outro respondeu: "Tudo bem, ela está usando luvas".

Apesar da discriminação explícita e do caráter higienista das falas, a enfermeira realizou o procedimento e prestou o socorro necessário. Relatos resilientes como esse parecem não ser exceção dentre os profissionais negros das áreas da saúde.

Não obstante, a face mais perversa, explícita e dramática das iniquidades raciais em saúde é a morte violenta de pessoas negras, seja pelas mãos do estado, como no caso de George Floyd, nos EUA, que morreu sufocado por um policial branco e levantou o debate de que "vidas negras importam", seja pela violência alastrada no tecido social, como no caso da morte do jovem congolês Moïse Kabagambe, no início deste ano, no Rio de Janeiro.

Para além dessa faceta mais dramática, as desigualdades raciais em saúde se dão de formas muito sutis e veladas, como é próprio do racismo. É preciso conhecer mais desta realidade e, para tanto, são necessárias mais pesquisas e produção de conhecimento a fim de embasar melhores políticas públicas.

E essas pesquisas, como sugere o editorial da revista Cadernos de Saúde Pública, devem manter sim e aprimorar o recorte racial. Neste sentido, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com o Instituto Çare, recentemente inaugurou uma posição de pesquisa para dedicar-se ao tema, com o desafio de explorar os dados disponibilizados pelo DataSus.

Uma iniciativa que busca somar esforços a outras, especialmente vinculadas a movimentos e coletivos de mulheres negras trabalhadoras da saúde, que, historicamente, têm chamado a atenção para a problemática e para a quase ausência de política de saúde da população negra. Afinal, vidas negras importam, saúde da população negra importa.

Rony Coelho é cientista político e pesquisador de Economia da Saúde do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Gisele Campos é assistente de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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