Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

O protesto como política pública

Pensar o direito ao protesto como uma questão de política pública exige uma mudança de olhar

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Eraldo Souza dos Santos

É doutorando em filosofia na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne

Seria o direito ao protesto uma questão de política pública? A pergunta soa, em um primeiro momento, contra-intuitiva. Protestamos, entre outras razões, para que o governo implemente determinadas políticas públicas ou para que aprimore as políticas públicas existentes. Protestar seria, desse ponto de vista, um dos meios pelos quais os cidadãos buscam garantir que a justiça seja realizada através da política institucional. Além disso, o protesto é visto frequentemente por aqueles no poder antes de tudo como um empecilho para a realização de políticas públicas. Protestar seria, nessa perspectiva, um dos meios usados pela população para dificultar a realização de certos fins.

Ele é um homem negro de olhos escuros, cabelos crespos escuros e barba. Na imagem, ele veste uma blusa de botão e está na frente de uma estante de livros
É doutorando em filosofia na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne - Divulgação

Fato é que tratamos o exercício do direito ao protesto, sobretudo quando exercido sob a forma de manifestações de massa nas ruas do país, como uma questão fundamental de política pública. Na maior parte dos casos, atos de protesto se apresentam como um inconveniente, colocando em xeque o ir e vir de transeuntes e motoristas. Muitos lançam acusações de "baderna" ou "desordem" contra os movimentos sociais e os acusam de atacar os direitos daqueles impactados pelas manifestações, sobretudo dos trabalhadores que querem voltar para casa no final do dia. A isso somam-se apelos à proteção da propriedade pública e privada contra depredação por manifestantes. A polícia, quando não as Forças Armadas, é convocada a desempenhar um papel central na gestão do protesto de rua e a usar a violência estatal contra os manifestantes caso necessário para reestabelecer a "ordem pública".

O protesto se torna, nesse panorama, uma questão de política pública através da criminalização das ações dos manifestantes e dos movimentos aos quais pertencem. Na Europa e nos Estados Unidos, ativistas assistiram na última década à criminalização progressiva de sua ação política. No Reino Unido, por exemplo, o novo Public Order Act criminaliza em termos vagos a "interferência em infraestruturas nacionais essenciais" como rodovias tendo em vista a ação de movimentos contra a crise climática como Extinction Rebellion. Entre nós, movimentos sociais de esquerda têm insistido que a Lei antiterrorismo nº 13.260, sancionada por Dilma Rousseff antes dos Jogos Olímpicos de 2016, contribuiu para intensificar a criminalização de movimentos sociais no país. Uma série de projetos de lei relacionados à definição de terrorismo têm sido apresentados por partidos de direita desde então, a maior parte durante o governo de Jair Bolsonaro. Se aprovados, tais projetos poderão criminalizar ainda mais a ação de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

No Brasil e no mundo, o princípio que rege o protesto como questão de política pública é a ideia de que a ordem atual precisa ser respeitada, conservada, preservada e protegida. Mas partir desse princípio é pressupor que a ordem pública e política atual é justa. Os movimentos sociais progressistas de nosso tempo desafiam tal ideia, ao insistir nas ruas que a ordem atual tem sido usada para perpetuar a injustiça e a desigualdade. Do ponto de vista de tais movimentos, a ordem pública e política atual esconde uma desordem mais profunda.

Pensar o direito ao protesto como uma questão de política pública exige uma mudança de olhar. Em vez de nos perguntarmos se o ativismo é inconveniente para a ordem pública, precisamos nos perguntar se os atos de protesto em questão contribuem para a realização da justiça e da igualdade e, em caso positivo, se não deveríamos nos juntar ao movimento. Precisamos igualmente nos perguntar se não temos a obrigação enquanto cidadãos de lutar por políticas públicas que garantam que ativistas possam exercer seu direito ao protesto.

Em uma sociedade tão injusta e desigual, não deveríamos todos, talvez, ser ativistas? Essa é, em última instância, uma questão que a lei e o governo, com seus dispositivos de criminalização, não podem responder por nós. Uma questão que o ativismo – como prática democrática – nos provoca a responder, sempre de novo.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Eraldo Souza dos Santos foi "The Times They Are A-Changin" de Bob Dylan.

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