Dois mil e vinte e três foi um ano marcado por debates importantes sobre a aplicação da Convenção da Haia de 1980, que versa sobre aspectos civis da subtração internacional de crianças, e sua consequência na vida das mulheres brasileiras que retornam ao país com seus filhos, sem autorização dos pais; ou que têm seus filhos subtraídos e levados pelos pais para viverem no exterior distantes das suas mães.
Além de matérias jornalísticas e textos de opinião, com histórias de mães brasileiras separadas de seus filhos, tanto por determinação judicial de retorno da criança ao exterior, como nas hipóteses em que o pai estrangeiro leva o filho para outro país, sem autorização da mãe, em 2023 houve audiência pública no Congresso Nacional, com vários depoimentos de mães e um encontro internacional oficial na Holanda, em Haia, com participação dos atores dos Estados Partes da Convenção da Haia.
No Brasil, cerca de 80% dos casos de subtração de filhos são de mães que voltam do exterior sem autorização do pai.
O assunto saiu do âmbito privado para ser visto e tratado como uma questão merecedora de respostas dos Estados, por violação a direitos fundamentais das mulheres e das crianças. A lente de gênero ganhou força no debate e tem disputado espaço com a alegação da necessidade de proteção dos direitos do pai privado da convivência com o filho.
A Corte Europeia de Direitos Humanos já havia se pronunciado sobre as conexões entre os tratados de direitos humanos e a Convenção da Haia de 1980. No final de 2023, o Paraguai foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em razão da falta de diligência e de celeridade em relação à devolução de uma criança, que foi levada, quando tinha menos de dois anos, da Argentina para o Paraguai pela mãe, sem o consentimento do pai.
A Corte IDH considerou que o Estado violou direitos do pai da criança por demorar quase 18 anos para solução do caso. Apesar da decisão célere do judiciário pela restituição da criança ao local de residência habitual —Buenos Aires—, a Corte IDH entendeu que o Paraguai não tomou as medidas necessárias para localizar o paradeiro da mãe e do filho.
E, mesmo após a localização da criança, que ficou desaparecida por nove anos, o Estado falhou ao não promover a aproximação e criação de laços entre pai e filho. A ausência de norma que regulamentasse o procedimento de retorno da criança após decisão judicial foi considerada uma violação à Convenção Americana de 1969.
Desse julgamento, dois pontos merecem atenção, por dialogarem com situações que acontecem no Brasil que, como o Paraguai, é Estado Parte da Convenção da Haia de 1980 e não tem normas para regulamentar o procedimento pós decisão judicial.
O primeiro é a adoção do princípio do melhor interesse da criança desde a perspectiva do pai. E o segundo, é a condenação baseada na falta de diligência estatal, apesar do julgamento célere.
Essa decisão da Corte IDH precisa ser considerada no desenho e implementação de políticas públicas no Brasil, já que há preocupações comuns entre Estados latino-americanos no tema da subtração parental internacional de crianças.
O Estado brasileiro, seguindo a tradição de Rui Barbosa (também conhecido como Águia de Haia), não pode negligenciar o cumprimento de seus deveres e obrigações no cenário internacional e, por isso, o tema da proteção internacional da criança com consideração da perspectiva de gênero deve receber atenção prioritária e fundamental para integrar a agenda dos direitos humanos e as políticas públicas que tratam da atenção às crianças como sujeitos de direitos no âmbito internacional.
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O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha de S. Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Inês Virgínia Soares e Guilherme Calmon foi "Família", dos Titãs.
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