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Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

A magia do cochilo: por trás das 'siestas' espanholas

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Barcelona (Espanha)

É patata: depois do almoço na casa dos meus sogros espanhóis, vamos todos pro sofá tomar chazinho e, infalivelmente, a conversa começa a arrefecer até eu notar um hharhrhrhrmmmm suave -- é meu sogro dormindo sua sagrada siesta.

Vinte minutos depois, lá está ele desperto de novo e reintegrado ao papo. Fresco y serelepe como a rosa no cabelo da dançarina de flamenco.

ilustração em preto e branco mostra um personagem adormecido sobre uma mesa, descansando a cabeça sobre os braços cruzados, enquanto um peixe flutua no éter à distância
Ilustração de @cdd20 - Reprodução / IG@cdd20

Cada vez mais estudos indicam que a soneca da tarde pode ter inúmeros benefícios para a saúde: aliviar o estresse, melhorar a performance cognitiva e física, fortalecer a imunidade, favorecer a longevidade etc etc. Pra alguns, poderia ser a salvação para noites maldormidas, névoas mentais, burnouts, demências, unha encravada y dores de amores. A siesta está na moda, a siesta é o novo Elixir Mágico.

((Ok, vamos combinar que poucos nessa vida capitalista de meo deos podem se dar ao luxo de cochilos vespertinos. Mas, por um momento, podemos também fantasiar que todos trabalhamos pro Google e temos à disposição uns "nap pods", essas cápsulas de dormir retrofuturistas em forma de bolha, pra dar uma dormidinha amiga no trabalho --))

A Espanha é conhecida como a terra mitológica da siesta. Ora, ce pode estar concluindo então que o povo aqui está entre os seres mais privilegiados e saudáveis do planeta.

Mas, pasme. Segundo dados da BBC, apenas 18% dos espanhóis contemporâneos praticam uma cabezada vespertina. 60% dos entrevistados declararam jamais recorrer a sonecas diurnas.

De onde vem então essa fama da siesta espanhola?

A origem do hábito, dizem, remonta ao Império Romano. A palavra vem do latim para "sexta", em referência à sexta hora da manhã, calculada em função da posição do sol. Hoje, corresponderia a algum horário entre 13h e 15h da tarde, dependendo da época do ano.

Na Espanha, o termo recobrou popularidade depois da Guerra Civil. Nessa época, país em crise, tornou-se comum ter mais de um emprego pra sobreviver, e a siesta era simplesmente mas importantemente o momento de descanso entre jornadas.

"Era habitual que um empregado de banco trabalhasse de 8 a 14h e depois em um escritório de 16h a 20h", afirma Nuria Chinchilla, economista e professora da Universidade de Navarra.

Começava assim a tradição de um dos principais modelos de trabalho espanhóis, a "jornada partida", que até hoje leva lojas, escritórios e restaurantes locais a fecharem portas entre 14h e 16 ou 17h, reabrindo depois até umas 20h, 20h30.

Quem visita as zonas turísticas de grandes cidades como Barcelona ou Madri não vai notar tanto, mas em bairros mais afastados e pueblos ainda é uma prática muito comum.

Entre as consequências da controvertida jornada fragmentada, muitos espanhóis não só não fazem siesta como dormem pior do que seus vizinhos europeus: estatisticamente, vão pra casa mais tarde, jantam mais tarde e dormem mais tarde, sendo que despertam no dia seguinte à mesma hora que todo mundo.

Mais tarde MESMO. Aqui não é incomum jantar às 22h, até 23h. Um choque quando cheguei de uma temporada vivendo na Inglaterra, onde a janta média costuma acontecer às 19h, 20h no máximo.

Até a hora "quente" de programação da tevê espanhola acontece mais tarde: enquanto Portugal e Itália concentram o "prime time" entre 20h30 e 23h, por aqui a parrilla televisiva começa por volta das 22h30.

A fama de notívagos dos espanhóis não é coisa da minha cabeça. Ou pelo menos não só da minha cabeça. Sempre tô vendo "vizinhos" e "expats" (os estrangeiros que vivem aqui, tipo Eu) reiterando o mesmo.

Só pra dar um exemplo. Uma vez, eu e meu namorildo espanhol ficamos presos na ilha de Córsega por conta de um vendaval que obstruiu as saídas de barco. Tentando encontrar um lugar pra jantar às 10 da noite, nos deparamos com restaurantes fechando e risinhos bullies dos franceses. "TINHAM que ser espanhóis", ouvimos de um -- que não nos deu de comer, miseráver.

Pra piorar, desde a Segunda Guerra Mundial o relógio biológico dos espanhóis sofre com um fuso horário distorcido.

Diz a lenda (porque até hoje essa correlação não foi comprovada) que a Espanha adotou a hora da Europa Central (ou seja, de Berlim) em 1940 em lugar da Ocidental, que nos corresponderia por localização peninsular, por simpatia do general Franco com os nazistas.

Pra se ter uma ideia, essa alteração dupla (porque se soma ao horário de verão) nos leva agora mesmo a ter um pôr-do-sol quase às 22h da noite, enquanto que no vizinho Portugal -- com quem a gente teria que estar sincronizado por fuso -- o entardecer "acontece" uma hora antes.

Entidades locais como a Associação para a Racionalização dos Horários Espanhóis (ARHOE) defendem a correção de horário para adequar o ritmo biológico à luz solar. Volta e meia há debates políticos sobre o tema, mas por enquanto não há mudanças no horizonte.

***
Já integrada à família do meu consorte local, e inspirada pelo talento cochilístico do meu sogro, hoje em dia eu mesma às vezes dou uma apagada sem prólogos em algum almoço de domingo.

Intimidade e confiança é isso, poder babar e ronronar enquanto outros seres humanos seguem seus debates filosóficos e suas séries da Netflix ao redor.

Em carreira solo, também sou afortunada por poder dormir siestas ocasionais (((algo que nunca tinha feito antes de me mudar pra Espanha -- mas, também, hay que decir que eu era mais xóvem, e agora tô na perimenopausa fritando o relê com fadigas e insônias mil))), e posso atestar: feitas corretamente, são um santo remédio contra a letargia da tarde e os problemas de memória e concentração que comecei a ter a partir dos 40.

Ainda que os espanhóis não durmam tanto à tarde, algumas iniciativas locais ajudam a perpetuar a fama de cochilo lovers.

Por exemplo, em 2017 uma empresa lançou a campanha das "siestesillas" (um trocadilho com siesta e cadeiras, cadeiras pra fazer siestas), cápsulas à disposição do público na estação central de Atocha, em Madri.

No mesmo ano, a empresa Siesta and Go criou o primeiro "siestódromo" do país, espécie de hotel cápsula pra cochilos rápidos, em uma zona de escritórios de Madri -- algo comum há mais tempo em outras grandes capitais do mundo como Tóquio e Nova York.

Os preços começam em 4 euros (R$ 22,87) para meia hora em uma cama num quarto compartilhado a 9 euros para uma hora inteira de soneca em um quarto individual.

***

Por último.

Existem 148957018 estudos científicos e discussões sobre a Siesta Ideal, mas o básico, creio, poderia ser resumido assim:

1. que seja cedo -- entre 13 e 15h-16h é o ideal. Mais tarde do que isto pode afetar o sono da noite.
2. que seja curta -- duração ideal é de 15 a 20, no máximo 30 minutos. Mais do que isto e você pode despertar lesade depois (a chamada "inércia do sono"), levando uma média de meia hora a 1 hora pra voltar à Terra.

3. que não seja pra compensar noites maldormidas -- alguns especialistas, como o neurocientista Matthew Walker, autor do livro "Por que nós dormimos?", defendem a ideia de que biologicamente estamos "programados" pra um sono bifásico, isto é, além do descanso da noite, nosso metabolismo naturalmente desacelera pela tarde, e uma siesta nesse contexto tem tudo a ver.

Mas Walker também frisa que o ser humano adulto, em média, precisa de pelo menos umas 7 horas de sono noturno. O sono da noite é insubstituível, e a siesta deve ser um bem-vindo complemento. ¡Dulces sueños!

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