Frederico Vasconcelos

Interesse Público

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Descrição de chapéu Folhajus violência

Advogado revela erros judiciais em relatórios policiais forjados

Tolerância da Justiça estimula a resistência ao uso de câmeras corporais pela PM

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São Paulo

O texto a seguir é de autoria de Airton Florentino de Barros, advogado, promotor de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo. É uma reflexão sobre as investigações policiais sem métodos científicos e o relato de um caso exemplar de injustiça patente.

Airton defendeu um cidadão condenado por crime de trânsito com base em relatório forjado por Policial Militar para proteger um colega, verdadeiro responsável pelo acidente. O episódio ganha atualidade diante da resistência de policiais militares ao uso de câmeras corporais.

O corporativismo é reforçado pelas controvertidas declarações do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos); pela projeção de seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, com pretensões eleitorais; pela tolerância da Justiça e medalhas concedidas a magistrados a título de serviços prestados.

O promotor aposentado pretende publicar um livro reunindo, como diz, "os casos de corrupção e erro judiciário em que atuei como cartorário, promotor e advogado".

Câmeras corporais usadas nos uniformes de policiais militares da Policia Militar de São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress

A polícia brasileira, incluindo a paulista, nunca fez inquérito que prestasse. Uma ou outra investigação, excepcional mesmo, serve de base para justa condenação de algum suspeito.

E a culpa desse estado de coisas, em que a investigação policial ainda é medieval, porque raramente se faz por métodos científicos (a principal prova ainda é a testemunhal), é do Ministério Público e do Judiciário que, ao invés de colocarem um basta nessa situação, preferem chancelar a "não investigação" e continuar condenando pessoas sem prova suficiente.

Um inquérito só é concluído no país com a apuração correta de um crime quando um juiz, um promotor ou a imprensa trata do caso com mais cuidado. Do contrário, acontece o que todo mundo sabe.

Em outras palavras, prevalece, como verdadeira, a versão que a polícia registra em seu relatório.

Há um livro de James Ellroy ("The Nightwatchman"), que se popularizou por meio do filme "Os Reis da Rua", em que um policial responde a outro: "Só um policial pode fazer isso. Porque a polícia pode fazer o que quiser". E quando seu interlocutor indaga: "Mas e a verdade?". Ele responde: "A verdade é o que a polícia põe no seu relatório".

É exatamente isso que prevalece nas investigações da polícia brasileira.

Imagine nas hipóteses em que policiais são os autores do crime?

Há 45 anos, eu era promotor público (esse era então o nome do cargo) da Comarca de Poá, que compreendia também Ferraz de Vasconcelos e Itaquaquecetuba.

A polícia prendia na sexta-feira quem ela queria manter mais tempo preso, porque o auto de prisão em flagrante era conferido pelo MP e pelo juiz só na segunda-feira.

Justamente numa segunda, examinei um daqueles autos de prisão e me manifestei pelo relaxamento da prisão.

Eram dois presos, um de 18, acompanhado de outro com 17 anos de idade. Um auto só com confissão de 20 graves delitos (assaltos a mão armada) de uma vez.

Notei que aqueles jovens (bandidos ou bodes expiatórios) confessaram haver cometido um assalto em São Paulo, Capital, e outro em Araraquara, no mesmo dia, em horários improváveis (uma hora de diferença entre um e outro).

Ao ver isso, o tão admirado quanto respeitado juiz, Renzo Leonardi, sugeriu, sem prejuízo de outras medidas, a convocação do Delegado de Polícia para uma reunião, em que a autoridade policial compareceu.

Explicou dizendo que o Delegado de Polícia com mais inquéritos policiais encerrados era beneficiado com recursos materiais e humanos e promoção de agentes.

Assim, como a confissão do indiciado era considerada prova cabal, era também motivo de encerramento de inquérito.

O certo é que a partir daquela reunião, os inquéritos passaram a seguir critérios mais rigorosos na comarca.

Recentemente, fui procurado para, já como advogado, lógico, defender de graça um pobre de um técnico de vendas que, conduzindo seu veículo utilitário adquirido em longas parcelas como instrumento de trabalho, foi interceptado abruptamente, com manobra ilegal, numa rodovia, por veículo dirigido por um PM.

Ele, e não o PM, acabou sendo condenado por crime de trânsito (lesão corporal gravíssima), a uma pena de mais de quatro anos de reclusão.

E vi que as coisas da polícia continuam na mesma.

Meu escritório não atua na área criminal. Mas topei por uma razão: tratava-se de uma injustiça patente, da condenação de um inocente, eleito bola da vez para responder no lugar de um PM, o verdadeiro responsável pelo acidente de trânsito.

Ocorre que o PM encarregado do registro da ocorrência, depois preso pela prática de diversos crimes, providenciou para que seu colega escapasse da responsabilidade, alterando o sítio dos fatos para prejudicar a perícia, omitindo fatos relevantes, escolhendo as testemunhas convenientes no inquérito...

Fez como o policial que após matar alguém, coloca uma arma na mão da vítima, já estendida no chão, para simular troca de tiros e, assim, a legítima defesa.

Conforme a lei, o crime decorrente de acusação de excesso de velocidade só se comprova por registro de equipamento tecnológico (radar, vídeo) aferido pelo Inmetro.

Pois bem. Ministério Público e Judiciário, aceitando mais esse inquérito mal feito, entenderam bastar a aferição da velocidade pela mera impressão visual de testemunha.

Aliás, a única prova material da dinâmica do acidente era um croqui com registro das marcas de frenagem, diametralmente contrária à acusação. Mas nem foi analisada.

Nada adiantou.

Injustiça qualificada e manifesta, feita e confirmada. Mais vale manter o "sistema", ainda que condenando um inocente.

A verdade, na visão do Judiciário brasileiro, infelizmente, continua sendo a que a polícia registra em seu relatório.

"As leis e as Cortes de Justiça não diferenciam em nada das teias de aranha. Prendem os fracos e pequeninos, mas são destroçadas pelos fortes e poderosos" (SOLON, 638-558 a.C).


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