Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros Artes Cênicas

Brecht quebra a quarta parede até em livro de poemas para crianças

'Versos de Bichos' reúne textos do escritor alemão ilustrados pelo brasileiro Marcelo Tolentino

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Ilustração de Marcelo Tolentino para

Ilustração de Marcelo Tolentino para "Versos de Bichos", de Bertolt Brecht (ed. Boitatá) Divulgação

"O palco não é um herbário nem um museu zoológico com animais empalhados. O ator deve ser capaz de criar seres humanos."

Essa frase de Bertolt Brecht, que está no livro "Sobre a Profissão do Ator", ajuda a explicar algumas ideias do dramaturgo alemão, as engrenagens do que foi chamado de teatro épico e os motivos de ele ter se tornado um dos autores mais importantes do século 20 —título que carrega até hoje, embora alguns defendam que sua literatura esteja envelhecendo mal.

Em poucas palavras, suas peças buscam sempre deixar atores e público conscientes e alertas do jogo que se desenrola sobre o palco. No teatro épico, a plateia não esquece que está assistindo a uma representação. O ator jamais desaparece como artista nem cria a ilusão de que se transformou na personagem. Segundo Brecht, "ele imitará outra pessoa, mas não de tal modo ou a tal ponto que o tomemos por ela".

É aí que entram em cena conceitos como distanciamento, estranhamento, quebra da quarta parede e a conversa entre atores e público durante a apresentação, por exemplo. Esse é também o terreno de "Versos de Bichos", livro que reúne poemas para crianças escritos pelo dramaturgo, com ilustrações do brasileiro Marcelo Tolentino.

O distanciamento já começa na capa. Nela, vemos um grupo de figuras humanas com cabeças de animais —ou talvez seja o contrário e estejamos diante de animais com corpos de gente. De qualquer forma, logo abaixo do título há uma águia, um elefante, um porco e uma cobra. Na contracapa, vemos um tigre, um cavalo, uma vaca e um galo. Todos com braços, pernas e jeitos humanos.

Ilustração de Marcelo Tolentino para "Versos de Bichos", de Bertolt Brecht
Ilustração de Marcelo Tolentino para "Versos de Bichos" - Divulgação

As figuras vestem camisetas, usam calças compridas e seguram uns as mãos dos outros, como se fossem atores no fim de um espetáculo, no instante em que agradecem os aplausos. Ou, indo mais além, é como se dissessem, antes mesmo de o leitor abrir a edição, que eles são e não são bichos. São também representações, arquétipos, espelhos das nossas relações humanas.

Sim, Brecht faz tudo isso num livro para crianças. Assim como não subestima a inteligência do espectador que vai ao teatro, o escritor tampouco menospreza a esperteza do público infantil.

Talvez o mais óbvio seja pensar que esse diálogo entre autor e espectador-leitor em "Versos de Bichos" apareça na forma de uma conversa direta entre ambos ou de uma quebra na narrativa. Mas não é o que ocorre. A estranheza e o distanciamento produzem suas faíscas de outras maneiras.

Nos poemas, a todo instante somos confrontados com o choque entre os animais e a sociedade humana, na qual eles parecem estar perfeitamente inseridos. A águia, por exemplo, tem embates com críticos. O corvo e o canário discutem a relação entre arte e liberdade. O tatu-bola se torna religioso depois de um desmoronamento. E tem ainda o cavalo, para quem deixo as próprias palavras de Brecht:

"Era uma vez um cavalo/ que vivia sem embalo,/ pra corrida era muito parado,/ aflito perante a carroça, mudou de lado,/ tendo então político se tornado./ É agora excelentíssimo e prezado."

Ilustração de Marcelo Tolentino para "Versos de Bichos", de Bertolt Brecht
Ilustração de Marcelo Tolentino para poema sobre a cobra - Divulgação

Tudo é e não é. Como diz o posfácio do livro, os poemas lembram as fábulas versificadas do Iluminismo e os bestiários medievais, mas ao mesmo tempo são uma crítica contundente do mundo do século 20 —e também do século 21, que está cheio de políticos que mais parecem cavalos parados. É nesse espaço fronteiriço que a literatura de Brecht floresce.

As ilustrações de Tolentino ajudam a criar esse efeito. Nas páginas internas, os animais perdem as formas humanas que tinham na capa. Mas, como recomenda o dramaturgo, eles não formam um "museu zoológico com animais empalhados". Muito pelo contrário.

O poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht
O poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht - Gerda Goedhart

A estranheza das imagens nasce de representações que conseguem ser tanto científicas quanto surrealistas. Os animais são anatomicamente perfeitos, mas poderiam ter saído de um sonho. Carregam um quê de loucura. Ao mesmo tempo, são bichos e não são bichos.

O ilustrador dá ainda uma dica visual extra. As páginas são tomadas por dois insetos que não estão nos textos: as formigas e as abelhas —sobretudo estas últimas, que voam pelas páginas em diferentes escalas, entre o protagonismo e o esconde-esconde.

Não custa lembrar que as duas espécies são animais sociais, formam colônias e, mais do que isso, compõem um exército de trabalhadoras. São assim como nós, seres humanos.

Versos de Bichos

  • Preço R$ 89 (32 págs.)
  • Autoria Bertolt Brecht e Marcelo Tolentino
  • Editora Boitatá
  • Tradução Maria Gutierrez

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