Há muitos anos, lá na virada do século, escrevi uma reportagem para esta Folha sobre algo que começava a movimentar o cenário econômico nacional, mas ainda falava baixo e pedia anonimato para comentar os bons resultados, usando termos hoje banidos do glossário politicamente correto, como homossexualismo em vez de homossexualidade, e opção sexual para o que nunca foi escolha: o então chamado mercado GLS, sigla que na época designava gays, lésbicas e simpatizantes. O negócio em pauta, na ocasião, era um empreendimento turístico voltado prioritariamente para esse público que ainda não era abertamente aceito em muitos hotéis e resorts do país. Os anos e décadas passaram e a situação, se melhorou na letra da lei não mais apenas para os GLS, mas para todo o universo de gêneros contidos na sigla LGBTQIA+, ainda encontra barreiras e enfrenta preconceitos que chegam a estatísticas aterrorizantes de ataques e mortes.
No mundinho do montanhismo, das trilhas e das aventuras outdoor, notoriamente conhecido por ser um ambiente predominantemente masculino —e, convenhamos, um bocado machista, e não menos homofóbico, a imagem recorrente ainda é a dos super-homens-alfa posando de peito aberto nos mais altos picos do planeta. Essa bolha só é furada com muita teimosia e dedicação.
A apuração deste texto, por exemplo, exigiu várias publicações em grupos dedicados a esses esportes, mas levou mais de uma semana para a reportagem obter uma informação objetiva. Embora sejam grupos pra lá de prolixos, em que todos os membros adoram dar palpite sobre tudo, para o bem e para o mal, o silêncio a respeito de minha consulta era ensurdecedor. Iolanda Cardoso de Oliveira, dona de uma agência que, naquele antigo texto, admitiu dizer com todas as letras ser das poucas que ofereciam viagens de aventura e ecoturismo para esse segmento, a Terrazul, confessa 24 anos depois que desistiu do ramo "por falta de profissionais especializados nesse nicho na época". Hoje investe alto no mercado single, juntando seres solitários mundo afora em pacotes de charme.
Levou semanas até que uma boa alma, finalmente, me sugerisse discretamente conversar com o pessoal da Altitude Queer, agência especializada em levar o público LGTBQIA+ para vivenciar o que de melhor a natureza exuberante de nosso país tem para oferecer. Oba!
"A Altitude nasceu a partir de uma inquietação minha e da Nágjla, que somos montanhistas, e nos incomodava ver poucas pessoas abertamente LGBTQIA+ no ambiente da natureza", conta Lucas Diniz, turismólogo e guia credenciado no Ministério do Turismo. Observando iniciativas de inclusão bem-sucedidas no exterior, eles resolveram criar a agência a partir de um coletivo já voltado para a discussão de temas ligados à comunidade na região de Campos do Jordão, em São Paulo, onde vivem.
"Realmente, é um universo machista, e esse ponto de vista foi uma das coisas que me levaram a ter a vontade de criar algo voltado para a comunidade, considerando que eu sou uma mulher cis que namora uma pessoa trans", conta Nágila Oliveira, montanhista, tatuadora profissional e artista plástica.
Fundado em setembro de 2023, Altitude Queer quer ir além dos passeios, promovendo rodas de conversas sobre temas caros aos participantes, em geral entre 15 e 20 pessoas, acolhendo os que sempre se sentiram excluídos dessas atividades. "Começamos com trilhas menores, para divulgar o grupo e as atividades", explica Diniz. "Foi muito legal, porque reunimos um grupo bem diverso e fomos abrindo novas ações, como oficina de escalada, por exemplo, ou trilhas mais puxadas, sempre entre níveis fácil e intermediário", acrescenta.
Nágila, que integra o coletivo LGBT da Serra da Mantiqueira, lembra que o principal ativo conquistado pela Altitude é fugir dos olhares tortos que sentia quando percorria as trilhas da região de forma independente. "Em grupo, ninguém tem cara para dizer nada", explica, "mas quando íamos sozinhas a situação era bem diferente". Entre os muitos detalhes que pretendem assegurar a melhor experiência inclusiva, ela cita o briefing que sempre fazem antes de começar cada atividade, durante o qual cada participante pode escolher até o pronome por que prefere ser chamado, "e o bom humor que a gente vive sabendo que pode falar de tudo, sem problemas".
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