Quantos degraus você, leitor, já subiu hoje? E na última semana? No mês, talvez? Bom, se a pessoa não consegue trocar o elevador pela escada mais próxima, tente imaginar o que é subir 22 mil degraus com uma mochila de 22 quilos às costas —e usando um par de botas de neve, que impedem o movimento habitual dos pés. Imaginou? Pois essa é parte da rotina de treinos básica de Tiago Toricelli, 46, jornalista e publicitário que tenta conciliar o preparo para cumprir a meta de escalar o Everest (sempre ele!) com o dia a dia de 8h às 18h no departamento de marketing de uma grande empresa de produtos alimentícios.
Como se não bastasse, Toricelli precisa conciliar mais alguns detalhes em sua rotina, a saber: dar atenção aos três filhos, o menor deles com 3 anos e que adora ir com o pai para o mato nos finais de semana, quando o treino é mais puxado. Resultado: aquela rotina de treino na escada do edifício onde mora, que citamos aí acima, é realizada à noite, ao longo de cinco horas e meia, terminando sempre por volta da meia-noite.
Mas o que leva um ser humano normal, que nunca se imaginou semideus como os grandes escaladores gostam de parecer, a encarar um desafio desse tamanho, mais exatamente 8.849 metros de uma escalada cruel e que não raro deixa muitos pelo caminho?
Para começar, vale dizer que Toricelli sempre gostou de esportes e participou de várias modalidades em sua vida profissional e particular. De volta de sua primeira grande empreitada de montanhismo, subindo o Huayna Potosi, na Bolívia, com 6.088 metros, já foi escrevendo um livro ao qual deu o título de "Manual do alpinista de primeira montanha". Bom, nem o livro é um manual, nem quem escala na Bolívia é alpinista, denominação só válida para quem circula pelos, claro, Alpes europeus.
Preciosismos linguísticos à parte, o blog conversou com Toricelli (atenção, patrão, a conversa foi na hora do almoço) para saber como é que uma pessoa normal consegue equilibrar a rotina de executivo de uma grande empresa, com o planejamento de um projeto tão ambicioso quanto escalar o Everest.
"É uma dedicação, uma doação enorme, uma preparação contínua", explica. "Porque aquilo é uma paixão, a montanha entra no seu dia a dia, no seu sangue", acrescenta, contando que, embora escale há 13 anos, só há três descobriu que o Everest era uma possibilidade.
"A ideia da alta montanha só entrou na minha vida quando entrevistei o Waldemar Niclevicz, porque até então achava que aquilo era algo muito distante, eu só consumia tudo sobre montanhismo de longe", lembra Toricelli, citando o primeiro brasileiro a conquistar o pico mais alto do mundo, entre muitas outras façanhas. "Quando vi aquela figura falando da alta montanha vi que era real, ele existe, ele se prepara, se planeja e faz acontecer. Foi aí comecei a me planejar para altas montanhas na minha vida", diz.
Foi assim que ele começou a desenvolver seu próprio plano de treino de olho no Everest. "Faço duas meias maratonas semanais, às segundas e quintas-feiras, nos outros três dias faço fortalecimento ou resistência em academia, e nos finais de semana tenho uma gama de exercícios que eu mesmo desenvolvi, como subir os 22 mil degraus na escada do meu prédio ou ir para alguma montanha aqui perto", descreve.
E a família, Toricelli, como lida com essa agenda? "Eu chego em casa e é só um afago, um oi, tudo bem, dou um tempo para os filhos e vou treinar, tentar terminar por volta de meia-noite, meia-noite e meia, para poder ter um descanso e no dia seguinte recomeçar", responde.
E a esposa, não reclama? "Minha mulher, Marina, é minha maior apoiadora, isso é o mais mágico da coisa toda, aqui em casa eu não escalo sozinho, faço montanha em família mesmo que não vão comigo, eles estão sempre presentes no dia a dia e ela entende minha doação, minha entrega", conta orgulhoso, afirmando que ela já colou uma grande foto do Everest na sala de estar para acompanhar sua escalada a cada passo, ponto a ponto pelo localizador de georreferência que mostra onde está a cada momento.
Ah, sim, na mochila cargueira não podem faltar as cartas de incentivo que Marina escreve a cada empreitada, para adoçar seu esforço —atenção, momento de paixonite aguda à frente!
"Sempre abro a primeira carta que ela me escreveu a cada noite antes de atacar um cume", conta ele, que define a leitura como "a riscada de fósforo necessária para encarar a auto-sabotagem normal de uma alta montanha, você sempre acha que está tudo ruim, ai, não estou preparado, essas coisas que todo montanhista vive".
Ah, mas tem férias, né? Alô, ilusão. "Quando que eu vou escalar", pergunta Toricelli, emendando que "só mesmo nas férias, é quando vou para a montanha, o que sobra é um espaço entre Natal e Ano Novo para umas férias em família".
E se conciliar a vida de pessoa física com horário comercial é complicado e exige renúncia de toda a família, bancar as aventuras é um capítulo à parte. Porque, por causa (também) da superlotação das vias de acesso ao Everest, é a cada ano mais caro chegar ao cume. Toricelli estima que sua empreitada vai exigir algo em torno de R$ 300 mil a serem arrecadados até o próximo mês de abril, primavera no Himalaia, quando iniciará sua jornada ao topo do mundo.
Como não é fácil um assalariado-pai-de-família bancar uma experiência desse porte, Toricelli foi atrás de patrocínio. "Bati à porta de umas 100 marcas, e agora começo a ter alguns retornos", conta, explicando que "tem que encontrar a marca certa, a pessoa certa, o momento certo da marca, tudo tem que conciliar para funcionar". Uma vaquinha virtual entre amigos que o acompanham pelo Instagram também ajuda. "É muito legal ver o nível de engajamento de pessoas que são impactadas de alguma forma pelo projeto, que é caro mesmo", destaca.
"Pensei que a parte de preparação física e planejamento fosse ser o mais difícil, mas conseguir financiamento é outro Everest", define.
E você, leitor, que já fez as contas dos degraus da escadaria mais próxima de sua poltrona, ainda acredita que não tem tempo para realizar seu sonho?
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.