Tenho lá meus problemas com viagens de avião. Não é o medo de morrer, esse eu já perdi. É o desconforto.
O desconforto físico de um corpo grande numa poltrona pequena. Em viagens longas, o contorcionismo para comer a refeição (refeição que não critico, é a comida possível) sem ferir nem sujar o passageiro ao lado.
E tem a estranheza de embarcar num tubo de lata e desembarcar num lugar completamente diferente, sem acompanhar a transição de paisagens e gentes.
Voos transoceânicos têm um tempo próprio, suspenso a 30 mil pés de altitude. Você não está em lugar algum, e aquele espaço é o mundo presente. As horas relutam em passar.
Pelo menos há os filmes para suavizar a travessia.
Na volta de Londres para São Paulo, vi um dos melhores filmes dos últimos tempos: "Vidas Passadas", da coreano-canadense Celine Song. Estava em cartaz na Inglaterra quando cheguei lá; no Brasil, sei lá por que cargas d’água, só deve estrear ano que vem.
Mui resumidamente, "Vidas Passadas" narra o romance nunca consumado da Na-Young com o Hae-Sung. São amigos inseparáveis até que ela emigra, deixando-o em Seul, quando ambos têm 12 anos.
Três décadas mais tarde, ele vai a Nova York reencontrar a namoradinha do ginásio, agora casada e americanizada.
O casal, com a presença constrangedora do marido americano de Na-Young, divaga sobre a vida que tiveram, a que têm e as que poderiam ter tido. A vida presente e as tais vidas passadas.
São saudades do que nunca vivemos e arrependimentos tão inúteis quanto inevitáveis. Todo mundo os tem. "Vidas Passadas" me pegou no contrapé ali sobre o Atlântico, quando eu retornava de uma vida provisória para a vida real oficial.
Em Londres, morei com minha filha pela primeira vez desde que ela tinha dois anos de idade. Agora ela é uma mulher de 28, com um filho de três em vias de se tornar um pequeno londrino.
Havia o evidente risco de atritos que causam centelhas que causam explosões. Mas não houve explosão, apenas o zelador batendo à porta porque o bife que eu fritava disparou o alarme de incêndio.
Fui feliz em Londres porque estava genuinamente acolhido por aqueles que eu amo e que me amam. Desfiz a imagem inóspita que eu tinha da cidade. Fiz o que eu mais gosto de fazer: macarrão para dividir com pessoas queridas.
Como os personagens do filme, amarguei remorsos e viajei no contrafactual.
E se tivesse insistido em Londres quando fui morar lá? E se tivesse insistido em viver com minha filha quando ela era criança? Na primeira hipótese, a filha não teria nascido; na segunda, quem não existiria é o meu outro filho, de outra mãe, agora com 11 anos.
Foi ele quem me trouxe rapidamente para o chão assim que desembarquei em São Paulo. Havia quebrado o braço, iria passar por cirurgia, precisava de mim. Eu estava aqui e sou feliz por isso também.
No dia da operação, uma sexta-feira, deixei pela primeira vez de escrever um texto inédito para a coluna. Era disto mesmo que eu iria falar. Aqui está, com duas semanas de atraso.
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